17.7.18

As Boas Maneiras

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2017
Fantasia, Terror, Musical
Direção: Juliana Rojas e Marco Dutra
Roteiro: 
Juliana Rojas e Marco Dutra




Clara (Isabél Zuaa) é uma estudante de enfermagem contratada por Ana (Marjorie Estiano) como futura babá de seu filho. Sozinhas, acabam construindo uma relação de afeto, enquanto a gestação evolui de maneira estranha e perturbadora.

Com um enredo bastante criativo, cujo embrião foi um sonho de Marco Dutra, As Boas Maneiras é uma bela fábula que foca em questões da maternidade, mas não se abstém de tocar em temas como racismo, relações empregatícias e sexualidade. O filme começa com Clara chegando a um prédio de apartamentos para uma entrevista de emprego e o porteiro já a encaminha para o elevador de serviços. Não demora muito, percebemos que Ana foi excluída da família e da sociedade em razão de uma gravidez fora do relacionamento e por ter se recusado a fazer um aborto, evidenciando o moralismo e, simultaneamente, a hipocrisia da família tradicional. 

Clara é contratada para ser a futura babá, mas deve "ajudar com a casa" enquanto o bebê não chega, extrapolando suas funções - algo bastante comum ainda hoje, principalmente nesses casos em que a funcionária passa a morar no local de trabalho. E, ainda que Clara tente questionar esse padrão contratual, ela se mantém submissa, fazendo um claro contraste com a babá que estava sendo entrevistada antes dela: cheia de referências e experiência, branca, literalmente travestida de Super Nanny/Mary Poppins, a moça se valoriza e exige um salário alto. Em contrapartida, após contratada, Clara chega a fazer até mesmo a pintura das paredes do quarto do bebê, além de manter a casa em ordem, fazer almoço e janta, fazer as compras e praticamente também servir de dama de companhia da patroa. 

A quebra na trajetória a qual estamos acostumados se dá quando a solidão das protagonistas acaba por aproximá-las e elas se envolvem emocionalmente. Entretanto, ainda que o relacionamento afetuoso das duas subverta os estereótipos de patroa/empregada, a hierarquia imposta por essa relação ainda se mantém. Já no fim do primeiro ato do longa, com a noite avançando, Ana diz que está com desejo de pinhão e insiste para que Clara vá ao mercado para comprá-los. Quando Clara se prepara para sair e Ana agradece, a resposta é: "é o meu trabalho".

Ademais, plasticamente o longa é maravilhoso. A dupla de diretores faz escolhas muito acertadas no modo como apresentam os créditos iniciais e finais, como retratam as paisagens, quando trazem as ilustrações no momento em que Ana fala sobre seu passado, no modo como evoca essa memória rural que combina muito com o tema folclórico do lobisomem. Além disso, a trilha sonora, e o fato de ser um musical, contribui para criar essa aura de fábula ao mesmo tempo delicada e sombria. As músicas cantadas são realmente muito bonitas e surpreendentemente emocionantes, muito bem encaixadas em momentos chave do filme.

Mas é no tocante à maternidade que o filme tem seu foco e há algo que eu gostaria de destacar na sua abordagem - e, a partir daqui, temo que não conseguirei segurar mais os spoilers. 

Na segunda metade do filme, o roteiro se concentra na relação estabelecida entre Clara e Joel (Miguel Lobo - olha a ironia), o menino lobo. E, para além das questões de maternidade trabalhadas como um todo, o que mais me chamou a atenção foi o fato de que Clara comete um dos erros mais comuns relativos à adoção de crianças muito pequenas: a falta de honestidade. Em geral, os pais adotivos, na tentativa de proteger a criança de suas origens, muitas vezes achando que elas são "pequenas demais para entender", escondem informações importantes e, até mesmo, o fato de serem adotadas. Esse erro costuma resultar, na vida real, no mesmo que acontece em As Boas Maneiras: quando Joel descobre que Clara conheceu sua mãe biológica e escondeu isso dele, as relações de confiança desmoronaram, desencadeando uma sucessão de revoltas que resulta em uma série de tragédias. Assim, gosto de pensar que a questão da alimentação vegetariana de Joel foi usada como uma alegoria. Clara impede o filho de comer carne da mesma maneira que o impede de saber a verdade. Não à toa, é quando ele come um bife pela primeira vez que essa vontade de buscar pelas suas raízes nasce dentro dele.  

Ainda nesse sentido, um dos maiores argumentos que eu ouço contra a adoção é a carga genética desconhecida. E se a criança herdar dos pais alguma agressividade ou má índole? Bom, acredito que não há herança genética mais preocupante do que a criança ser um lobisomem. Mas acaso isso realmente torna Joel mau? Ainda que as coisas tenham saído do controle, teria sido possível evitar os acontecimentos mais graves, sem para isso aumentar a repressão sobre o garoto? Eu, como aspirante a mãe adotiva, gosto do fato de que, de certa forma, o filme levante essas importantes questões.

No aspecto técnico, queria salientar o uso do animatrônico para representar o bebê Joel, uma escolha extremamente acertada. Além de ser um boneco muito bem feito, mesmo que conscientemente saibamos que se trata apenas de um boneco, a materialidade da criaturinha ajuda muito a criar um vínculo com espectador e, no meu caso, ainda resgata uma memória afetiva ligada aos bonecos animados usados em clássicos filmes de terror. Além disso, gosto muito do modo objetivo como o bebê é mostrado, em todos os seus detalhes, e o fato de acontecer rapidamente já logo após o seu nascimento. Uma demora nesse sentido, poderia provocar demais a imaginação do espectador, arriscando ocasionar a sua decepção quando a criatura fosse finalmente apresentada.

Aliás, por falar em memória afetiva, não bastasse o filme todo ser essa fábula que remete ao lobisomem do nosso folclore, podemos tecer paralelos com Frankenstein (ao ver a criaturinha se tornar acuada pela comunidade, estabelecendo-se no final como um mostro clássico, preparado para enfrentar os humanos) e com outras lendas, como o boto cor-de-rosa* e até a mula-sem-cabeça*. Sem mencionar que a Festa Junina* tem destaque na história, sendo uma das festas mais tradicionais da cultura brasileira. Mas o momento que mais me emocionou foi a pequena rima com Chapeuzinho Vermelho, quando, durante um ultrassom o médico diz, pausadamente, "Ele tá enorme! Olho grande, boca grande, mão grande", enquanto Ana observa com olhar apavorado.

Por fim, gostaria de mencionar as brilhantes atuações de Marjorie Estiano e Isabél Zuaa, absolutamente perfeitas em suas performances. Marjorie traz a jovialidade e todas as inseguranças que o papel exigia, produzindo cenas memoráveis que vão desde a dança do Chora Me Liga, passando pelo sonambulismo perturbador, até as expressões de completo pavor quando faz os ultrassons (evidenciando estar completamente despreparada para ser uma futura mãe, o que na verdade é muito comum na primeira gestação, ainda mais na situação de abandono afetivo no qual ela se encontra). Já Isabél consegue trazer a complexidade de seu personagem, que além de tudo passa por uma grande transformação durante o longa, mas sem perder sua personalidade. E só não digo que o filme é perfeito, porque o elenco mirim me parece dar certas escorregadas, entregando algumas falas muito decoradinhas, ainda que Miguel consiga segurar as pontas durante a maior parte do tempo - além disso, ele é muito cativante. Mas mesmo essas pequenas imperfeições pontuais nas atuações acabam dando certo charme e fazendo uma homenagem involuntária às grandes obras de José Mojica Marins.

E é por todas essas características que eu acredito que As Boas Maneiras seja um filme único e especial. Desde misturar o horror ao musical, remetendo ao mesmo tempo a clássicos do cinema internacional e da nossa cultura brasileira, trazendo escolhas estéticas ousadas e gerando uma história criativa e muito abrangente em temas sociais. Essa dupla de cineastas está mais do que de parabéns!



*Recomendo muito o podcast Cinematório Café Extpresso sobre As Boas Maneiras, onde a Raquel e o Renato falam sobre essa questão do folclore, entre muitas outras. E, já que estamos aqui, recomendo também outro podcast excelente: Feito Por Elas #53 As Boas Maneiras.