12.2.21

Cemitério Maldito (Pet Sematary)

Um garotinho bem pequeno, loiro e muito pálido, vestido em veludo azul marinho, se apoia em uma bengala de madeira e usa cartola cinza. Está olhando para a câmera, parado em um quarto. Do seu lado esquerdo há uma cômoda, ao lado direito uma cama, no chão de madeira há alguns tapetes antigos decorados, as paredes parecem ser decoradas e ao fundo cortinas cobrem parcialmente as janelas. 


1989
Terror
Direção: Mary Lambert
Roteiro: Stephen King
 






Louis (Dale Midkiff) muda-se de cidade com sua esposa Rachel (Denise Crosby) e seus filhos Ellie (Blaze Berdahl) e Gage (Miko Hughes) após conseguir um emprego como médico. A nova casa da família está localizada muito próxima a uma rodovia de tráfego intenso de caminhões e, por causa disso, perto dali, há um cemitério de animais - em sua maioria mortos por atropelamento. Quando o gato da família é também atropelado, o vizinho Jud (Fred Gwynne) apresenta a Louis um segundo e mais distante cemitério, onde existe um tentador e perigoso poder.

Mary Lambert tem uma longa carreira, muito dela calcada em curtas-metragens, produções para a televisão e filmes que saíram direto para vídeo, dentre os quais alguns dentro da temática horror. Em termos de cinema, além de Cemitério Maldito (1 e 2), ela dirigiu apenas outros três filmes de temáticas bem variadas, os quais não receberam muita atenção. Após um hiato de 20 anos longe do cinema, ela está atualmente filmando A Castle for Christmas, um romance que terá Brooke Shields como protagonista.

Apesar do pouco destaque que sua carreira teve no cinema, pode-se dizer que sua primeira experiência já a imortalizou. Cemitério Maldito se tornou um dos grandes clássicos cult do terror, sempre lembrado com muito carinho por quem o assistiu mais ou menos à época em que foi lançado. Meu primeiro contato com o filme foi alguns anos depois, por volta de 2000, mas há cenas dele que ficaram gravadas em minha memória, apesar dos muitos anos que se passaram até que eu o revisse, algumas semanas atrás.

Devo admitir que muita coisa hoje me deixou com um gosto amargo na boca. Coisas que eu provavelmente sequer havia notado no passado - praticamente todas relacionadas ao roteiro, mesmo que este tenha sido escrito pelo próprio Stephen King, autor do livro "O Cemitério" no qual o filme foi baseado. 

Em primeiro lugar, a ideia do cemitério indígena ser esse local tão amaldiçoado, presente em outras histórias do King e que acabou se espalhando pelo imaginário do gênero terror como um todo, é uma abordagem, no mínimo, controversa. Não há qualquer tipo de explicação, o que seria um ponto a favor (costumo considerar uma qualidade quando algumas coisas são deixadas no ar), mas, nesse caso, a falta de explicação acaba criando ou reforçando uma ideia de que a(s) cultura(s) dos povos indígenas possui algo de profano ou ruim.

Outro ponto que me incomoda bastante, é toda a questão que envolve o passado de Rachel com sua irmã Zelda (Andrew Hubatsek). O modo como a doença dela é retratada para ser algo assustador, dando enfoque às deformações em seu corpo, hoje já não deve mais ser algo aceitável. É uma visão que marginaliza e reforça ainda mais o preconceito com os corpos diferentes do que se considera "padrão". Como não li o livro, não sei se isso foi melhor trabalhado e desenvolvido, de modo a talvez deixar mais relacionado o problema com a falta de cuidado dos pais de Rachel, salientando que o erro está no abandono e na vergonha que eles sentiam da filha, e não na doença dela em si. No entanto, da maneira como foi colocada no filme, a história de Zelda acaba reforçando o problema, em vez de apontá-lo.

Me aborrece, ainda, o modo como Rachel é retratada como alguém frágil que está a ponto de ter um ataque de nervos a qualquer momento. O filme se redime temporariamente, pois, conforme se aproxima o final, ela adquire uma força de caráter surpreendente e se torna a parte mais equilibrada dentro do casal - o que infelizmente é desperdiçado no momento derradeiro.

Finalmente, acho incoerente a história que Jud conta a Louis, sobre o caso do morto enterrado no cemitério indígena. Afinal, se houve um monstro à solta na cidade, provavelmente teria sido mais sensato invadir a casa que o abrigava para matá-lo (era um grupo grande de pessoas contra um morto-vivo!), do que simplesmente tocar fogo no local com uma pessoa viva lá dentro. Porém, esse não vejo como um problema tão grande. A questão está apenas no modo como a história foi desenvolvida, pois a sucessão de ações é contada de forma tão resumida, que deveria ter sido dedicado um pouquinho mais de tempo de filme para trabalhar as motivações e decisões dos personagens.

Agora, chega de falar mal. Pois eu ainda gosto muito do Cemitério Maldito!

Vou começar exaltando o pequeno Miko Hughes, que vive o adorável/assustador Gabe. Esse menino é, possivelmente, uma das crianças mais fofinhas da história do cinema. Ele tinha DOIS ANOS E MEIO durante as filmagens e atuava com uma naturalidade impressionante. Eu não estou de brincadeira, ele é muito muito muito bonitinho. E quando ele vira um monstrinho, ele é um monstrinho assustador e ainda muito muito muito bonitinho. 

Aproveitando o embalo, eu sei que disse que não ia mais falar mal, mas só vou dizer brevemente que foi difícil aturar o tanto que o Dale Midkiff é um péssimo ator. Contudo, o resto do elenco é bastante satisfatório. Destaque para Brad Greenquist, que interpreta um fantasminha camarada muito do simpático! Aliás, esse fantasma destoa bastante dentro do filme, parecendo fora do lugar - a sua presença deixa o filme irregular, pois ele acaba sendo um alívio cômico um pouco dissonante. Contudo, ainda foi um dos personagens de quem mais gostei, para além do agradável, e meio sem noção, senhor Jud. 

Outra coisa que parece meio fora de lugar, mas que igualmente me atrai, é o quadro da casa dos pais de Rachel. Desde que apareceu pela primeira vez, fiquei hipnotizada pelo rosto retratado, que fica algo entre uma criança e uma mulher de meia idade. Tão hipnotizada eu fiquei pelo rosto, que só percebi que era de fato uma criança, e que ela estava usando exatamente as mesmas roupas com as quais Gabe aparece enquanto morto-vivo, quando eu fui descrever as imagens para colocar aqui nesse texto! De qualquer modo, é um quadro intrigante e que contribui para a ambientação e o clima de estranhamento do filme, dando ares de que há uma força maior movendo os personagens ou de que há algo predestinado.

Uma moça de cabelo curto loiro está ao telefone. Atrás dela, sobre uma parede revestida em madeira, um grande quadro que representa uma pessoa pequena (parece uma criança, mas o rosto tem algo de adulto), usando roupa de veludo azul marinho e cartola cinza, segura um chicote e a seus pés um gato cinza (com rosto que lembra feições humanas).

A maquiagem e os efeitos práticos são muito bem feitos, apesar de os demais efeitos especiais terem ficado um pouco datados - ainda bem que são inserções muito pontuais, de modo que não chega a atrapalhar. A direção de arte é também muito boa, criando cenários diversos, críveis e, quando necessário, desagradáveis. Volto a mencionar o quadro como exemplo de recurso para nos deixar sempre com a sensação de que há alguma coisa de muito errada prestes a acontecer.

A tensão em algumas cenas também é muito bem construída. A fatídica sequência do atropelamento é muito angustiante e mesmo nessa revisão tive dificuldade em assisti-la. Muito também por causa da atenção dada a Gabe em cenas anteriores, extraindo o máximo do carisma natural do ator mirim. Eu poderia dizer que o tempo dedicado ao desenvolvimento da nossa relação com os personagens é parte importante do roteiro, mas a personalidade de Rachel e a atuação sofrível de Dale atrapalham um pouco. Ainda assim, as cenas finais são muito boas e todos os momentos com Church (o gato), são excelentes.

Antes de finalizar, queria comentar brevemente sobre a refilmagem de 2019, dirigida por Kevin Kölsch e Dennis Widmyer. Talvez por não estar esperando por muita coisa, foi um filme que me surpreendeu bastante. Eles acertam em vários quesitos: as atuações que neste são bem melhores (e eles tentam emular o Miko Hughes, utilizando um garotinho idêntico a ele, mas não tão carismático quanto), ter subvertido algumas situações do roteiro para criar algumas surpresas, ter retirado partes da história que estavam sobrando na narrativa do original e ter contextualizado melhor o tópico do cemitério indígena. Contudo, a problemática com a irmã continua me incomodando e ainda tem alguns outras questões pontuais sobre os quais prefiro me abster aqui senão eu teria que fazer outro texto só sobre ele. Além disso, a atmosfera do filme não me envolveu tanto quanto a do original com seu jeitinho kitsch de ser - o que, para mim, conta bastante.

Assim, Cemitério Maldito, mesmo com seus defeitos, ainda possui uma gama de qualidades que são capazes de mantê-lo em seu patamar de clássico do terror. Além disso, de qualquer maneira, mesmo hoje percebendo como problemáticos, o cemitério indígena e Zelda fazem parte do conjunto de elementos que acabaram por tonar o filme tão marcante na memórias das pessoas. É por isso que ainda pretendo me debruçar sobre os outros filmes de terror da carreira de Mary Lambert, ainda que sejam produções pequenas, lançados direto em vídeo.