21.12.20

Especial Daria Nicolodi - parte 3

Chegamos, então, ao final desse especial dedicado a Daria Nicolodi. Caso tenha perdido, comece pela primeira parte, na qual eu escrevo sobre sua vida e carreira, depois siga para a parte 2, em que meu foco está em seu trabalho longe de Dario Argento. 

A intenção dessa série de textos sobre Daria Nicolodi, para além de fazer uma homenagem à artista, foi também trazer à luz um problema que as mulheres vinham (e continuam) enfrentando dentro da indústria cinematográfica: o apagamento, o descrédito. Nicolodi, além de atriz, contribuiu de diversas formas para os filmes dos quais participou, mas o pouco crédito que recebeu não veio sem muita insistência e luta. Não à toa sua filha Asia teria dito que ela a ensinou a "chutar as bolas"¹. Daria parecia não ter um gosto especial por brigar e lutar, mas ela foi levada a isso para não ter seu nome apagado em questões que para ela eram importantes. Ela sabia que dentro de uma indústria comandada por homens e para homens, uma mulher não seria facilmente ouvida ou levada à sério.

Daria Nicolodi é exemplo de resiliência, mas também de força de vontade e firmeza. Definitivamente, uma mulher incrível.

Assim, como não poderia ser diferente, hoje finalizo me dedicando a dois dos meus filmes preferidos estrelado por Nicolodi, ambos em parceria com seu então companheiro, Dario Argento.



Uma mulher branca (Daria Nicolodi), com os cabelos longos molhados, está gritando com as mãos apertando as laterais da cabeça. Está enquadrada do peito para cima, vestindo uma camisa bege de manga longa, parada dentro de um cômodo e em frente a uma porta ou janela branca aberta. Do lado de fora há um jardim e chove abundantemente.
Tenebre



1982
Giallo, Terror, Mistério, Suspense
Direção: Dario Argento
Roteiro: Dario Argento





Os anos passam e nossa percepção muda.

Assisti Tenebre pela primeira vez em 2012 e, de acordo com minha lembrança, era um filme do qual eu havia gostado muito. Não me lembrava, no entanto, que havia tanta coisa para não se gostar nele. É interessante porque hoje eu acho esse filme ainda melhor do que antes, e, mesmo assim, passei a gostar menos dele.

Vou começar com os problemas. Talvez o que mais me incomoda no filme é a consciência de ser sexista e ainda debochar disso. Em seu primeiro terço, a impressão que tenho é que Argento se dedicou a criar situações misóginas que chegam a destoar do que ele próprio vinha fazendo em sua carreira, em uma reação exagerada e infantil às criticas que o cinema italiano de horror, e por consequência ele mesmo, vinha recebendo. É só notar o contraste do que estou escrevendo aqui com o que você lerá abaixo sobre o próximo filme. 

E ele não se limita ao visível ataque às mulheres. A coisa fica ainda mais pesada quando a sexualidade dessas mulheres entra em jogo. Se a inspetora assistente é ridicularizada, isso piora com relação à namorada do protagonista, ainda mais com a jornalista lésbica, até culminar em uma representação que chega a ser perversa da personagem secundária bissexual.

Só a personagem de Daria Nicolodi se salva, e nem muito. Trata-se da secretária do protagonista que, apesar de extremamente eficiente e de fazer um ou dois comentários ácidos e certeiros, tem pouca relevância em termos de pensamento investigativo, com raros momentos de iniciativa e ação com relação ao desenrolar da trama. Nicolodi, por sinal, tampouco estava animada com a personagem. Inclusive, a maravilhosa cena do grito (da imagem ilustrativa) foi o resultado da Daria descontando ali as suas frustrações reais com relação às filmagens².

O roteiro tenta justificar em algumas falas do protagonista que o problema está no vilão, mas é o retrato que Argento faz das personagens pré-morte, o modo como ele entende que elas são e se comportam, o que mais me ofende. O problema não é o "vilão", o problema é como possivelmente o filme reflete o próprio cineasta. Ademais, Argento parece ter se inspirado em uma situação real em que um fã começou a persegui-lo². SPOILER: tal qual o protagonista que no fim das contas era apenas mais um misógino fruto da mágoa pela rejeição tentando fingir-se de progressista, sinto que parece ser o caso do Argento, guardadas as devidas proporções. Assim, da mesma forma que o assassino do livro espelha o subconsciente do autor, o roteiro do filme de certa forma espelha o subconsciente do diretor - ou o consciente, pois isso tudo foi, em algum nível, proposital. 

Contudo, a atriz que faz a moça de sapato vermelho da praia é uma mulher transgênero, Eva Robins. Em 1982, quão raro isso era? Vai entender o Dario Argento. Acho que faz parte da complexidade do ser humano... 

Além disso, como eu afirmei acima, as situações mais problemáticas se concentram em sua maioria no primeiro terço do filme. Depois disso, a direção primorosa de Argento quase me faz perdoá-lo. Chega a dar raiva ser "obrigada" a gostar tanto de um filme do qual eu estava gostando tão pouco. Chamo a atenção para talvez um dos momentos que mais me colocaram embasbacada: um travelling em que a câmera vai seguindo bem em close pela fachada de uma casa moderna magnífica ao som da música tema do filme - como sempre, as escolhas de locação e a trilha-sonora continuam a ser grandes diferenciais nos filmes do diretor. Essa cena de dois minutos e meio levou três dias para ser filmada; as distribuidoras norte-americanas queriam cortá-la do filme para o lançamento nos EUA, mas felizmente Argento se recusou³.

Assim, é, talvez, com esse filme que Dario Argento fecha o combo giallo com mais precisão: tem assassino que odeia mulheres (e misoginia em geral), câmera em primeira pessoa pelo olhar do assassino, arma cortante, assassino de luva preta, protagonista homem, trama cheia de reviravoltas, a estética apurada e trilha-sonora marcante. E, de fato, o filme é uma grande homenagem ao giallo literário e aos livros de detetive em geral, visto que, por exemplo, seu protagonista é um escritor de sucesso desse gênero e chega a citar Arthur Conan Doyle. O roteiro, por sinal, é muito elaborado e bem trabalhado - só prefiro não me alongar falando sobre ele pois seria praticamente impossível não entregar spoilers de algum tipo ao fazê-lo.

Em todo caso, apesar de minhas críticas ao filme ocuparem a maior parte da resenha, Tenebre continua sim sendo um dos melhores filmes do diretor. O caso é que se eu for me alongar muito descrevendo as qualidades de Argento, soarei repetitiva, visto que são características marcantes na sua filmografia toda. Talvez o que eu ainda não mencionei é o fato de que ele filma as mortes com um senso estético tão apurado quanto o que ele usa para suas ambientações. Os enquadramentos e a montagem de duas mortes em específico são arrebatadores: na primeira destaco a visão do rosto da vítima através do rasgo da camiseta, e a antepenúltima,  pela quantidade e "comportamento" de sangue na cena.



Uma mulher branca (Daria Nicolodi) de cabelo ondulado castanho claro cortado um pouco acima dos ombros e franja reta cortada um dedo acima das sobrancelha. Tinha a mão direita abaixada junto ao tronco e a levanta até o lado do rosto enquanto gira uma piteira rapidamente entre os dedos. A câmera acompanha o movimento da mão. Ela usa camisa branca e blazer preto, lápis preto contornando os olhos e está em um como de paredes claras e bem iluminado.
Prelúdio Para Matar (Profondo Rosso)

1975
Giallo, Terror, Mistério, Suspense
Direção: Dario Argento
Roteiro: Dario Argento e Bernardino Zapponi



Possivelmente o meu filme preferido do Dario Argento - só não digo com mais certeza, pois Suspiria é uma obra-prima, mas gostar, gostar mesmo, acho que gosto mais de Prelúdio Para Matar. E é, definitivamente, o meu giallo preferido. Sendo que boa parte da minha afeição por esse filme se deve à presença de Daria Nicolodi. Sua personagem Gianna traz a leveza e irreverência perfeitas para balancear o tema pesado que há na história e, segundo a própria Daria, alguns de seus diálogos foram reescritos por ela junto com Zapponi⁴.

A versão originalmente lançada nos EUA possuía 22 minutos a menos. Foram retiradas todas as cenas de humor e as cenas de romance, além de parte da própria trama⁶. Quando penso que isso retirou boa parte das aparições de Nicolodi do filme, fica fácil entender o motivo de ele ter sido um fracasso nos EUA à época do lançamento. A propósito, a versão que se encontra com maior facilidade atualmente é a que tem simultaneamente o áudio em inglês e em italiano, porque não havia a dublagem em inglês das cenas cortadas.

Gosto de Gianna não só porque ela é divertida, mas também por ser uma personagem inteligente e ousada para a época, ainda mais em se tratando do cinema de horror italiano, o qual, como já disse, era extremamente misógino. Gianna tem voz ativa, é determinada, arrojada e ambígua. SPOILER: Ela faz os avanços para cima do personagem de David Hemmings, ela investiga e o instiga a investigar, ela até mesmo o salva. Aliás, o filme quebra com outras características inerentes ao giallo: em Prelúdio Para Matar as vítima não são sempre mulheres e o próprio assassino é um mulher. Sem contar que temos um personagem coadjuvante gay e uma personagem secundária trans, ambos tratados de forma respeitosa pelo protagonista - novamente, algo muito raro para a época e para os giallo (mas, infelizmente, o personagem gay acaba morrendo ao final). 

Mas a influência de Nicolodi vai mais longe do que sua atuação impecável e carismática. Daria foi a pessoa que sugeriu a banda Goblin para a trilha-sonora do filme⁵ e, inclusive, participou da composição das músicas⁴. E posso dizer sem titubear que a música tema de Prelúdio Para Matar é uma das melhores criações feitas para o cinema e faz parte do meu dia a dia - não à toa a retrospectiva do Spotify apontou "vintage italian soundtrack" como o 5º gênero que eu mais ouvi em 2020.

Prelúdio Para Matar, como eu disse na primeira parte desse especial, foi quando conheci e me apaixonei por Daria Nicolodi. E o mesmo pode dizer Dario Argento. Foi na audição desse filme que eles se conheceram e se apaixonaram⁵, ficando os próximos 10 anos juntos. Espero que Argento reconheça a influência positiva que Nicolodi teve em sua carreira. Para dizer o mínimo, ele deve a ela sua longa parceria de sucesso com a banda Goblin e, sem ela, não existiria Suspiria, seu maior sucesso.

Claro, Argento é (ou ao menos era) um diretor excepcional, como já afirmei outras vezes, até mesmo ali em cima. Seu senso estético e sua direção firme estão presentes desde seus primeiros trabalhos. Prelúdio Para Matar tem enquadramentos muito precisos e Dario tem uma habilidade impressionante para criar momentos de tensão a partir de poucos elementos. Além disso, o filme possui ambientações que literalmente foram inspiradas em quadros⁷ e uma mansão abandonada que até hoje é um dos meus cenários preferidos. Também destaco, pensando no sucesso de Prelúdio Para Matar, a sagacidade de Zapponi e Argento ao pensarem em mortes com as quais os espectadores pudessem estabelecer uma relação⁶ - o tipo de dor gerado por um tiro ou uma facada não é algo que muita gente já experimentou, mas queimaduras e abrasões são dores relacionáveis e que praticamente todo mundo já sentiu.

Enfim, com um ótimo elenco, personagens que quebram estereótipos de gênero e sexualidade, um roteiro bem construído, mortes antológicas, cenários inspiradíssimos (repito, aquela mansão abandonada, que coisa ma-ra-vi-lho-sa!), uma trilha-sonora absolutamente perfeita, não posso deixar de amar Prelúdio Para Matar.

Assim, finalizo minha homenagem a uma mulher incrível com esse filme igualmente incrível.



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¹ FOSCHINI, Francesco. Daria Nicolodi, l‘importante non è raccontarsiIl manifesto, 4 jul. 2020.
² Tenebrae (film)InWikipedia : the free encyclopedia.
³ Tenebre (1982): TriviaIn: IMDb.
⁴ Seleção de tuítes da Daria Nicolodi. @NicolodiDaria. InTwitter.
⁵ FOTI, Titti Giuliani. Daria Nicolodi: "La mia svolta? Fare la nonna"LA NAZIONE, Firenze, 21 set. 2014.
⁶ Deep RedInWikipedia : the free encyclopedia.

11.12.20

Especial Daria Nicolodi - parte 2

Se na primeira parte da minha série de textos dobre Daria Nicolodi falei mais genericamente sobre sua vida e carreira, me atendo pouco aos três dos filmes que roteirizou, hoje escrevo sobre o outro filme pelo qual ela recebeu os créditos de roteirista, sobre sua participação no último filme de Mario Bava e sobre uma das comédias nas quais atuou. 

Assim, nessa segunda parte, pretendo fazer um apanhado da carreira de Nicolodi para além de sua parceria com Dario Argento.



Uma mulher branca (Daria Nicolodi) com cabelo ondulado castanho claro cortado à um pouco acima dos ombros e com franja curta repicada. Veste um vestido branco com babados na gola e nas mangas curtas, usa gargantilha de pérolas e segura uma lanterna. A parede atrás dela está coberta de tecidos rasgados vermelhos, empoeirados e cobertos de teias de aranha.
Paganini Horror


1989
Terror, Musical
Direção: Luigi Cozzi
Roteiro: Daria Nicolodi, Luigi Cozzi e Raimondo Del Balzo (história)




Já enquanto eu o assistia, estava muito claro para mim que Paganini Horror foi escrito por Daria Nicolodi. Sua estrutura e ideia central tem muitas semelhanças com Suspiria (1977). Trata-se de uma banda pop/rock que compra uma música perdida do compositor e violinista Niccolò Paganini - sobre quem recai uma lenda de que haveria feito um pacto com o demônio em troca de fama. Segundo o roteiro, a música adquirida seria justamente aquela que Paganini teria usado para invocar o demônio. A banda, então, decide fazer um clipe na própria casa onde viveu o compositor e onde ele teria feito o suposto pacto. 

Mas onde estão as semelhanças como Suspiria

São três: o envolvimento da trama com a arte, em Suspiria era a dança e em Paganini Horror, a música; a tentativa de ambientar a história em uma mansão assustadora; o fato de a trama ser tão simples e básica, que boa parte da história se passa com os personagens andando, procurando, explorando. Se você assiste aos dois filmes, fica evidente que a estrutura narrativa é muito semelhante.

Infelizmente, o fato de ser um roteiro tão simples, acaba deixando a qualidade do filme muito à mercê da execução. Com uma boa direção, ambientação, iluminação e trilha-sonora, temos uma obra prima. Porém, nas mãos de um diretor e equipe de arte não tão competentes, temos um filme medíocre.

E quero reforçar aqui: o enredo básico é sensacional. A ideia de um compositor violinista fantasma perseguindo uma banda de rock em um casarão antigo é algo que poderia ter virado, de fato, um filme inesquecível! Se o cenário fosse bem construído e a ideia da música amaldiçoada se misturasse à trilha-sonora, causando de fato algum impacto na história... Puxa!

Ao contrário, a casa, internamente, é de paredes brancas e portas simples, extremamente comum, e o único tratamento que recebeu em termos de cenografia foi uma imensidão de panos e véus distribuídos por alguns cômodos e um amontoado de manequins espalhados. Não dá medo, não é bonito, não causa impacto. Existe um quarto, inclusive, que possui um tratamento "diferenciado" para trazer a ideia da teoria da relatividade (que foi enxertada de um jeito bem mambembe no roteiro) em que as paredes brancas estão parcialmente cobertas com a fórmula "E=mc²" e há uma ampulheta gigante a um canto, com uma luz vermelha ou azul que vem de "lugar nenhum" - é um dos cenários mais insípidos (e feios) que já vi na minha vida. A música tema é pouco utilizada e não chega nem a ser marcante durante o filme. (Em compensação, o pôster do filme é maravilhoso!)

Sabe o que eu adoraria? Que o Luca Guadagnino tivesse escolhido esse filme para fazer sua refilmagem. Apesar de eu ter gostado do novo Suspiria, o original não precisava ser refeito, ele já era perfeito. Já Paganini Horror, esse sim, merecia ser revisitado, recontado, reinventado.

Além do roteiro, Nicolodi atuou no filme com uma personagem de certo destaque e com bastante tempo de tela, mas nem isso salva o filme, pois a personagem não é trabalhada o suficiente para ser memorável.

Enfim, pensando em tudo isso, acho perfeitamente justificável que Daria Nicolodi tenha afirmado certa vez que Luigi Cozzi roubou Paganini Horror dela¹. 



Uma mulher branca (Daria Nicolodi) está deitada em uma cama, seu rosto em close e ombros desnudos, os cabelos castanhos claros espalhados no travesseiro branco e cobrindo parte de uma bochecha e o queixo. Seus olhos claros estão abertos e a boca entreaberta mostrando um pouco dos dentes superiores.
Schock

1977
Terror
Direção: Mario Bava e Lamberto Bava
Roteiro: Lamberto Bava, Gianfranco Barberi, Alessandro Parenzo e Dardano Sacchetti


Também conhecido como Beyond the Door II

É difícil de ultrapassar a barreira da primeira meia hora. Tudo o que envolve a relação entre a protagonista e seu filho é tão desconfortável que parece ficar nos instigando a abandonar o filme. Apesar da tentação, recomendo que aguente firme. Tudo tende a melhorar (ou a piorar, a depender do ponto de vista). O fato é que o filme parece se encontrar e a fluir como um bom terror deve ser. A última meia hora chega a ser frenética! Mario Bava nos conduz muito bem num clima de tensão e paranoia crescentes. Há algumas cenas e sequências belíssimas, como por exemplo a cena cuja imagem escolhi para ilustrar essa parte do meu texto.

O lado bom é: temos quase 100% de Daria Nicolodi em tela. E ela está incrível no papel de Dora! Chego a temer que ela tenha arranhado as cordas vocais com tantos gritos desesperados, mas sua interpretação angustiada e à beira da loucura é o que faz o filme se manter nos eixos.

Daria também participou, junto com a banda Libra, da composição da trilha-sonora deste filme² - e a música tema é excelente! Esse é o momento em que eu conto para você que no início do ano montei uma playlist no Spotify com músicas de filmes de terror. Dentre elas, muitas de filmes italianos - a maioria da banda Goblin (ou de Claudio Simonetti), com exceção de cinco. A música tema de Schock é uma dessas cinco e, além dessa, duas de Mansão do Inferno (1980), uma de A Rainha Vermelha Mata 7 Vezes (1972) e uma de A Catedral (1989). E onde eu quero chegar com isso? No seguinte: sei de três trilhas-sonoras com as quais Daria Nicolodi alegava ter contribuído e, muito antes de saber disso, essas três trilhas-sonoras já estavam entre as minhas preferidas do terror italiano.

Segundo o Letterboxd, eu havia assistido Schock em 2016. Informação que, para mim, veio a ser um choque, pois eu não lembrava de absolutamente nada sobre isso. Não lembrava da circunstância que me levou a assisti-lo, não me lembrava do nome, não me lembrava de ter a Daria Nicolodi, não me lembrava do pôster (lindíssimo - apesar de ter sido praticamente copiado da capa do livro "Nós Sempre Vivemos no Castelo", de Shirley Jackson). A música eu conhecia porque comecei a ouvir trilhas-sonoras de filmes de horror italiano e fui colocando as minhas preferidas na já mencionada playlist - mas quando ouvi pela primeira vez no início desse ano, ela não me remeteu a nada, era como se estivesse ouvindo pela primeira vez na vida. Pensei comigo "quando sentar para assistir novamente, irei lembrando aos poucos" (como me aconteceu recentemente quando revi A Rainha Vermelha Mata 7 Vezes, sem lembrar inicialmente que já tinha assistido antes). No entanto, aqui estou eu, recém finalizada a seção, e continuo não lembrando de jamais ter assistido Schock antes. Tudo, absolutamente tudo foi uma surpresa para mim. Fica aí, então, o nosso mistério.


Uma mulher branca (Daria Nicolodi) de cabelo castanho preso em um coque e usando óculos, vestida com roupa social vinho, ao lado de um senhor branco (Jack Lemmon) grisalho usando óculos e terno azul marinho. Estão sentados a uma mesa coberta de documentos e conversam com pessoas extracampo.

Maccheroni



1985
Comédia, Drama
Direção: Ettore Scola
Roteiro: Ettore Scola, Ruggero Maccari e Furio Scarpelli





Das comédias nas quais Daria atuou, talvez esta não seja aquela em que ela tem mais tempo de tela. Apesar de ser a personagem feminina de maior destaque, o filme gira tão enfaticamente no relacionamento entre os personagens de Jack Lemmon e Marcello Mastroianni, que Nicolodi aparece em poucas cenas. 

O filme é engraçado, Jack Lemmon está muito bem no papel, mas Mastroianni se destaca - engraçado e comovente, brilha e faz o filme praticamente acender sempre que entra em cena. Nicolodi, apesar de secundária, faz seu personagem com graça e entrega perto do final uma interpretação embriagadamente deliciosa e sutil - adoro o momento em que ela tenta colocar o copo na mesa de centro, mas a mesa de centro não colabora. 

Nos primeiros minutos de filme, o modo como começam a construir a personalidade do personagem de Lemmon e apresentam o de Mastroianni, temos a impressão de que será uma comédia mais focada em conflitos, como em Antes Só do que Mal Acompanhado (1987), com Steve Martin e John Candy, mas rapidamente essa impressão é descontruída.

Embora haja uma irritante exaltação do "americano" interpretado por Lemmon pelos personagens italianos e o encerramento da história venha para reafirmar essa impressão, o filme, tal qual o personagem de Mastroianni, é espirituoso, divertido e emocionante. Além disso, esse enaltecimento é justificado  pelo contexto do filme e, ademais, é a cultura italiana que é desenvolvida de modo a nos cativar.

Na comédia, além deste, Daria participou de A Propriedade não é mais um Roubo (1973), seu primeiro filme do gênero; Il minestrone (1981), com Roberto Benigni; Viola (1998), com sua filha Asia Argento; e La parola amore esiste (1998), com Gérard Depardieu. Destes, fiquei bastante interessada em assistir aos dois primeiros.

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parte 3 estará disponível aqui a partir do dia 21/12/2020.



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¹ FOSCHINI, Francesco. Daria Nicolodi, l‘importante non è raccontarsiIl manifesto, 4 jul. 2020.
² Seleção de tuítes da Daria Nicolodi. @NicolodiDaria. InTwitter.

3.12.20

Especial Daria Nicolodi - parte 1

Preto e branco. Uma mulher branca de cabelos lisos castanhos e usando franja que se espalha na testa deixando a pele um pouco descoberta. Seu rosto está em close e quase de perfil. Segura algo com a mão esquerda e cheia de anéis - possivelmente é um espelho, para o qual ela olha concentrada. Na mão direita, um lápis de maquiagem.
Daria Nicolodi por Paolo Monti em 1970.
Eu tenho uma lista de mulheres no cinema que me inspiram, mas por algumas tenho um carinho mais especial. Daria Nicolodi, atriz e roteirista, é uma dessas mulheres. Faleceu aos 70 anos, no dia 26 de novembro deste ano. A notícia me pegou no dia seguinte, quando eu estava chegando ao trabalho, e deixou aquele meu dia mais cinza.

Nasceu em Florença, Itália, filha de um advogado e de uma estudiosa de línguas antigas formada em filosofia. Seu avô materno era pianista e compositor. Talvez por essa veia materna, Daria desenvolveu certa afinidade com línguas e música - falava 8 idiomas e participou da composição de algumas trilhas-sonoras dos filmes em que atuou¹. Frequentou a Academia Nacional de Arte Dramática em Roma e iniciou sua carreira pelo teatro antes de estrear no cinema².

Nunca foi muito de dar entrevistas³ e passou a ficar mais reclusa após a morte de sua filha mais velha, Anna, fruto de um breve relacionamento com o escultor Mario Ceroli. Anna faleceu em 1994 em um acidente automobilístico⁴. Ainda assim, mesmo reservada, Nicolodi possuía uma conta no Twitter, onde postava fotos de flores, compartilhava imagens vinculadas às artes plásticas, e conversava com fãs sobre alguns de seus trabalhos.

Descobri Daria Nicolodi em meados de 2012 em um filme que veio a se tornar um dos meus preferidos da vida: Prelúdio Para Matar (1975), o qual já foi mencionado diversas vezes nesse blog. Desde o primeiro momento, essa mulher me cativou sobremaneira e passei a notar sua presença nos gialli que assisti depois, geralmente dirigidos por Dario Argento, com quem manteve um relacionamento amoroso por cerca de 10 anos. 

Mas não foi só sobre os filmes do Dario Argento que Daria construiu sua carreira. O primeiro filme no qual atuou foi um drama de guerra chamado A Vontade de um General (1970). Em seguida, faria parte do elenco do drama Salomé (1972), mas estava ocupada com uma peça de teatro e não pôde participar das filmagens, apesar de seu nome constar nos créditos por um gracejo do diretor Carmelo Bene⁵. 

Ademais, ela fez outros filmes de drama e cinco comédias - o que não me surpreende, haja visto seu timming cômico afiado. Destaco dentre elas Maccheroni (1985), no qual contracenou com Jack Lemmon e Marcello Mastroianni. No terror, também atuou no primeiro longa dirigido por sua filha, Asia Argento, Scarlet Diva (2000) e no último de Mario Bava, Shock (1977). 

Com Dario Argento, a lista é um pouco mais longa. Apesar de o relacionamento ter terminado em 1985, ela continuou atuando em alguns de seus filmes até 2007, quando ele concluiu a terceira parte da trilogia das mães. No total, foram 8 obras de Argento das quais ela participou. E, apesar de raramente receber os créditos, ela não só atuava em seus filmes¹. Nicolodi afirmava que escreveu com Argento os roteiros de Suspiria (1977) e de A Mansão do Inferno (1980), além de ter colaborado com alguns diálogos de Prelúdio Para Matar, participado da composição da trilha-sonora deste último e de Suspiria, e até mesmo da escolha de elenco de Phenomena (1985).

Assim, de modo a abranger um pouco da carreira dela tanto como roteirista quanto como atriz, decidi separar esse especial em três partes. Hoje ainda pincelarei brevemente sobre aqueles dos quais já falei em outras resenhas: Suspiria e A Mansão do Inferno; e sobre o outro por cujo roteiro ela não foi creditada: Il Gatto Nero (1989). Na próxima semana, falarei de alguns filmes que ela estrelou e não possuem vínculo com Dario Argento: Paganini Horror (1989), Shock Maccheroni. E na última parte, me concentrarei em outros dois do Argento em que ela atuou: Tenebre (1982) e Prelúdio Para Matar.



Uma mulher branca (Daria Nicolodi) de cabelo castanho liso e com granja cortada reta cobrindo perfeitamente a testa. Ela está de perfil, com seu rosto em close. A iluminação que incide sobre ela é azulada e ao fundo, uma parede vermelha com uma janelinha fina e comprida em estilo art decò e com os vidros deixando passar uma luz azul.Suspiria / A Mansão do Inferno


1977 / 1980
Terror, Giallo
Direção: Dario Argento
Roteiro: Dario Argento e Daria Nicolodi 


Daria costumava dizer que a verdadeira autora de Suspiria era a sua avó Yvonne¹. A primeira ideia do filme surgiu após Nicolodi mencionar a Argento sobre a história que sua avó costumava lhe contar quando era criança: Yvonne alegava que teria estudado em uma academia de piano em que as professoras estariam ensinando, além de artes, magia negra². Dario gostou da história e, juntos, trabalharam no roteiro, que também teve como inspiração o ensaio "Suspiria de Profundis" de Thomas De Quincey. Além disso, a sequência final do roteiro foi baseada em um sonho que Daria teria tido quando morava em Los Angeles⁴.

Apesar de ser a parte mais criticada do filme, por ser excessivamente simplório e com alguns "furos", o roteiro é, a bem da verdade, bastante interessante e eu sempre defendi que era o suficiente para obra de arte imortal que Suspiria viria a se tornar. Os diálogos infantilizados, por exemplo, se dão devido ao fato de que originalmente a ideia seria que as estudantes da Academia de Dança fossem crianças de 8 a 10 anos⁶. Mas a mística das Três Mães, a ideia da arte vinculada com a magia, o ar fabulesco, são qualidades que o filme tem e que devem não só à direção precisa de Argento, mas ao próprio roteiro.

E se você acha que a contribuição de Daria se encerra na criação do roteiro, pode se sentar. Ela alega que participou, ainda, da composição da excelente trilha-sonora junto com a banda Goblin!¹ Ademais, apesar de não ter atuado no filme, é dela a voz de Helena Markos, a Mater Suspiriorum (Mãe dos Suspiros)⁶.

Não obstante a participação inegável de Nicolodi no roteiro de Suspiria, foi uma luta para conseguir convencer Dario Argento a lhe dar seus devidos créditos. E foi por não querer passar pela mesma provação que, mesmo o próprio Argento confessando ter trabalhado no roteiro de A Mansão do Inferno a partir de uma história escrita por ela, Nicolodi acabou deixando passar a falta de seu nome nos créditos como roteirista do segundo filme⁷. 

Ainda assim, nos últimos anos, em diversas oportunidades ela fez questão de afirmar sua participação crucial na criação da história de A Mansão do Inferno, argumentando, inclusive, que os dois filmes que ela roteirizou com Dario Argento são incomparáveis em sua carreira e que, até então, os filmes dele eram sempre sobre histórias de detetive¹. Não posso negar que faz sentido. Mas, hei, eu já estava convencida antes mesmo desse argumento, tendo em vista que Dario Argento não tem um bom histórico em se tratando de dar os devidos créditos às pessoas - basta procurar no IMDb o nome de Mario Bava na lista da equipe técnica do próprio A Mansão do Inferno.



Uma sala ampla e escura, com mobiliário antigo coberto de teias de aranha e parca iluminação que mistura o vermelho e o azul. Uma mulher está parada à entrada da sala, em frente a uma enorme porta de metal e vidro. Como parte da luz (azulada) entra pela porta, a mulher se torna quase apenas uma silhueta.
Il gatto nero


1989
Terror, Fantasia, Drama
Direção: Luigi Cozzi
Roteiro: Daria Nicolodi e Luigi Cozzi




Daria Nicolodi escreveu esse roteiro para ser a terceira parte da Trilogia das Mães, mas o produtor não estava interessado e Dario Argento decidiu focar em seu próximo filme, Tenebre⁸. Bobo ele, pois absolutamente qualquer coisa teria sido uma ideia melhor do que o que veio de fato a se tornar o último filme da trilogia (sem a participação da Daria no roteiro, diga-se de passagem). 

Nicolodi, alguns anos depois, entregou o roteiro a Luigi Cozzi, na esperança de que este resolvesse dirigí-lo. Contudo, Cozzi fez alterações no roteiro para transformá-lo mais em uma homenagem aos dois primeiros filmes, ao invés de uma sequência. Quando Daria viu o resultado, decidiu abandonar o projeto⁸. Certa ela, pois a colcha de retalhos que Il gatto nero (também conhecido como Demon 6: De Profundis) virou, chega a dar vergonha.

Uma das únicas coisas interessantes no filme é o uso de metalinguagem, que chega a lembrar um pouco O Novo Pesadelo: O Retorno de Freddy Krueger (1994). No entanto, para além das modificações de Cozzi no roteiro, como o CEO da distribuidora havia decidido por conta própria vender o filme como uma obra baseada em um conto de Edgar Alan Poe, uma das soluções "brilhantemente" escolhidas foi inserir cenas de gatos pretos em uma história que nada tinha a ver com o conto. 

Tudo no filme é tão mal realizado, que beira o ridículo. Os cenários não trazem nenhuma originalidade, a inserção da trilha-sonora nas cenas é abrupta e totalmente destoante, a maquiagem da bruxa Levana é muito muito muito ruim. Cozzi tenta, ainda, emular a iluminação chapada e colorida de Argento, mas o resultado é um fiasco, com luzes oscilantes e pulsantes que não compõem uma ambiência assustadora ou onírica, apenas incomodam (e não do jeito que um filme de terror gostaria de incomodar).

Provavelmente, com a direção de Argento e a ideia original de Nicolodi, este teria se tornado um ótimo encerramento para a trilogia das mães: melhor que O Retorno da Maldição: A Mãe das Lágrimas e muito melhor que Il gatto nero. Infelizmente, nunca saberemos.

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parte 2 estará disponível aqui a partir do dia 11/12/2020.



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¹ Seleção de tuítes da Daria Nicolodi. @NicolodiDaria. In: Twitter.
³ FOTI, Titti Giuliani. Daria Nicolodi: "La mia svolta? Fare la nonna". LA NAZIONE, Firenze, 21 set. 2014
Daria Nicolodi. In: Wikipedia : L'enciclopedia libera.
⁵ FOSCHINI, Francesco. Daria Nicolodi, l‘importante non è raccontarsiIl manifesto, 4 jul. 2020.
⁶ Suspiria (1977): TriviaIn: IMDb.
⁸ The Black Cat (1989)TriviaIn: IMDb.

2.12.20

Daria Nicolodi - Twitter

Algumas das informações do meu texto sobre Daria Nicolodi foram retiradas da conta dela do Twitter: @NicolodiDaria. Como trata-se de algo instável, visto que esta conta pode sair do ar por inúmeros motivos, resolvi juntar aqui alguns dos tuítes que usei como fonte, de modo que as informações não se percam. Junto, vou deixar links para cada um deles.

- Sobre Daria ter participado da escolha do elenco de Phenomena:

Yuri Di Genova (@YuriDiGenova), em 11/07/2014: "Jennifer Connelly è stata chiamata da Dario Argento per interpretare Phenomena?" // Daria Nicolodi (@NicolodiDaria), em 11/07/2014: "Fiz o casting em NYC tive carta branca do Dario, foi difícil convencer genit minor." (Traduzido do italiano por Google).
Link 01.

- Daria falava muito sobre ter escrito Mansão do Inferno, além de Suspiria:

Daria Nicolodi (@NicolodiDaria), em 10/01/2018: "Gostaria de escrever para amigos que curtam aqui no Tw. Suspiria e Inferno, os dois filmes que escrevi para Argento, mas não tenho tempo. Desculpe e Thnx." (Traduzido do inglês por Google).
Link 02.

Daria Nicolodi (@NicolodiDaria), em 01/09/2018: "Na minha opinião, quem o concebeu imaginou e escreveu mais :)" (Traduzido do italiano por Google) // angela rita iolli (@angelaritaiolli), em 01/09/2018: "Ma anche chi l'ha scritto ha fatto un capolavoro ☺ proprio un'immaginazione e un'idea fantastiche. Proprio brava Lei Signora Nicolodi" // Daria Nicolodi (@NicolodiDaria), em 01/09/2018: "Obrigado.  Suspiria e Inferno  os dois filmes "fantásticos" que escrevi para Argento,  na época, diretor de histórias de detetive, acho que são tão bonitos quanto o Frankenstein de Mary Shelley e que só uma mulher poderia concebê-los." (Traduzido do italiano por Google)
Link 03.

Daria Nicolodi (@NicolodiDaria), em 24/03/2018: "Eu imaginei e escrevi Suspiria e Inferno para Mr.Argento.  Acho que os dois filmes são peculiares em sua cinematografia." (Traduzido do inglês por Google).
Link 04.

Daria Nicolodi (@NicolodiDaria), em 04/11/2019: "Muito obrigado, Jeanette.  Espero que você veja Suspiria.It foi imaginado e escrito por mim.Inferno também.  O título foi inspirado no livro de De Quincey, a história de um conto narrado para mim por minha avó Yvonne." (Traduzido do inglês por Google).
Link 05.

Andrew Hawkins (@mrandrewhawkins), em 16/05: "Brilliant film and one of my favorite movies written by  @NicolodiDaria  too!" // Daria Nicolodi (@NicolodiDaria), em 16/05: "Thank you,Andrew. Writing Suspiria and Inferno for Dario Argento,collaborating to each single scene,from every point of view, was quite an...experience. I wonder I'm alive"
Link 06.

Timothy J Walker (@TimWalker25), em 22/12/2018: "Darla is simply one of the most gloriously beautiful women of all time!" // Daria Nicolodi (@NicolodiDaria), em 22/12/2018: "Oh Tim .My Grandma Yvonne,the real author of Suspiria and Inferno used to say : "Se non e'vero,e'ben trovato!".Thank you very much,Tim ❣." (Traduzido do inglês por Google).
Link 07.

- Sobre Daria ter participado da composição das músicas de Suspiria, ShockPrelúdio para Matar:

Daria Nicolodi (@NicolodiDaria), em 10/02/2019: "Sou o responsável e criador com o Goblin da música do Profondo Rosso e Suspiria e com I Libra da música do Shock.Il O resto não me responsabilizo, lamento não lhe dar satisfação. Obrigado, Giorgio 🎶" (Traduzido do italiano por Google).
Link 08.

Daria Nicolodi (@NicolodiDaria), em 26/09/2018: "Torino, 1974, Profondo Rosso  com meus dois D. favoritos.  Pela musica voce pode me agradecer Buonanotte.La terceiro D" (Traduzido do italiano por Google). Foto em preto e branco de Dario Argento, Daria Nicolodi e David Hemmings.
Link 09.

"Este tweet pertence a uma conta suspensa." // Daria Nicolodi (@NicolodiDaria), em 21/10/2019: "Verdade. A música de Deep Red e o roteiro de Inferno também. Obrigado por lembrar 🖤" (Traduzido do inglês por Google).
Link 10.


- Sobre Daria ter escrito alguns diálogos de Prelúdio para Matar:

Daria Nicolodi (@NicolodiDaria), em 24/12/2017: "Posso te contar uma coisa?  Reescrevi muitos diálogos com Zapponi.  Eu inventei a música do Profondo Rosso! O que posso dizer ... Divirta-se!" (Traduzido do italiano por Google) // Walter Romanò (@whitesnake66), em 24/12/2017: "ma...una domanda,e...Giorgio Gaslini???" // Daria Nicolodi (@NicolodiDaria), em 24/12/2017: "O mestre Gaslini obviamente melhor do que Simonetti Jr. afixou sua assinatura em alguns momentos musicais que você pode reconhecer.  obrigado ;)" (Traduzido do italiano por Google)
Link 11.


- Sobre Daria falar 8 línguas:

gianluca ellena (@gianlucaellena1), em 27/09/2018: "D.Argento immagino all'epoca già parlasse inglese. Riusciate a capirvi in scena con David? In fondo lui era io protagonista e il regista avrà dovuto dirgli tante cose..." // Daria Nicolodi (@NicolodiDaria), em 27/09/2018: "Eu falo oito idiomas.  O Dario fala de francês e inglês, muitas vezes atuei como tradutor, se é isso que ele estava perguntando, então nos sets italianos com atores estrangeiros sempre há um diálogo coach.In Deep Red Sr. Neil Robinson" (Traduzido do italiano por Google).
Link 12.



25.11.20

O Que Ficou Para Trás (His House)

Um homem (Sope Dirisu) e uma mulher (Wunmi Mosaku), ambos negros, sentados no chão sobre um tapete vermelho, frente à frente, em um ambiente cujas paredes estão descascadas e remendadas. Ele tem cabelo preto muito curto e ela usa seu cabelo preto em um penteado que o deixa preso em ondas rente à cabeça. Entre eles, uma toalha clara de mesa estendida ao chão e um jantar e velas espalhados sobre ela. Os dois estendem o braço ao centro da toalha para se servirem de comida. Por causa da iluminação e do cenário, a cena tem uma tonalidade predominantemente alaranjada.

 

2020
Terror, Drama, Suspense
Direção: Remi Weekes
Roteiro: Remi Weekes, Felicity Evans e Toby Venables
 




Bol Majur (Sope Dirisu) e Rial Majur (Wunmi Mosaku) acabam de chegar à Inglaterra após fugir de uma guerra no Sudão do Sul e perder a pequena Nyagak (Malaika Wakoli-Abigaba) durante a travessia. O casal irá enfrentar, além das dificuldades para se adaptar no novo país e relativas ao luto, a perseguição de uma entidade que os acompanhou: O Bruxo (Javier Botet).

Assisti a O Que Ficou Para Trás já ansiosa e cheia de expectativas, após ter ouvido uma série de elogios espalhados sobre ele. Trata-se do longa de estreia de Remi Weekes, de modo que impressiona a habilidade do diretor em construir momentos de absoluta tensão recheados de ápices assustadores. 

O filme mantém-se na tendência da última década, de retomada do terror psicológico que pontuou o final dos anos 1960 e início dos anos 1970, de calcar-se em situações reais entremeadas por algo sobrenatural - de modo que o sobrenatural costuma vir com uma carga metafórica que reforça e/ou amplia o sentido do horror já criado pela situação real posta. Vemos isso claramente em O Bebê de Rosemary (1968) e Inverno de Sangue em Veneza (1973), bem como em O Babadook (2014), Corra (2017) e Relic (2020), por exemplo.

No entanto, Remi dá um passo adiante, simultaneamente recuperando o susto como instrumento dentro do terror, o qual estava bastante desgastado após sua utilização ter sido esvaziada de sentido ao longo da história do gênero. Não é exagero quando digo que já há muito tempo não me deparo com um lançamento cinematográfico que tenha me atormentado com uma quantidade tão grande de sustos. E o grande pulo do gato é, digamos, a ausência de um pulo do gato. Trocadilhos à parte, o trunfo de Weekes é conseguir ancorar todos os sustos com absoluto sentido dentro de cada cena. Não há sequer um susto vazio, nenhum uso do clichê "era apenas um gato". 

Assim, o filme traz um casal atormentado por uma entidade sobrenatural, pelo luto e pela culpa, de modo que esses três elementos se fundem para criar uma atmosfera de deslocamento e desespero, permeada por momentos indiscutivelmente aterradores. Para além disso, os dois se encontram agora inseridos em uma nova cultura, enfrentando preconceito, humilhações e tendo que lidar com sentimentos conflitantes de gratidão e raiva. Rial e Bol estão sozinhos em um lugar hostil, que os recebe a contragosto e exige uma subserviência à qual é muito difícil de se submeter. Estão sozinhos e têm apenas o apoio mútuo ao qual recorrer. No entanto, quanto mais problemas surgem, mais eles se distanciam um do outro, ampliando cada vez mais a sensação de desolamento e desesperança. 

A ambientação é muito bem construída, de modo a reforçar as sensações desejadas. Quando Bol resolve explorar a cidade pela primeira vez, seu estado de espírito se traduz tanto nas locações quanto nas relações com os figurantes. Já Rial encontra uma cidade completamente diversa: labiríntica, ameaçadora. A própria casa onde moram vai se modificando com as ações dos protagonistas, ajudando a estabelecer um cenário que espelha a saúde mental dos mesmos. Por fim, ainda no quesito ambientação, a edição de som e trilha-sonora, em específico nas sequências mais calcadas no terror explícito, fazem um trabalho excelente no sentido de aumentar exponencialmente a nossa inquietação e medo puro. 

Além disso, mesmo se passando na Inglaterra, o longa nos coloca em contato com uma cultura menos eurocentrada, por meio do figurino, linguagem e das cenas que se passam no Sudão do Sul (sejam reais, lembradas ou imaginadas). E até mesmo a figura do bruxo, com sua história e caracterização, nos coloca em contato com novas crenças.

O filme conta com atuações primorosas da dupla de protagonistas e com a certeira participação de Matt Smith. Sope Dirisu entrega uma atuação inicialmente carismática - carisma esse que passa a ser de extrema importância conforme a trama se desenrola - e obsessiva, enquanto Wunmi Mosaku (que faz parte do elenco da muito comentada série Lovecraft Country, lançada neste ano) traz sensibilidade entremeada com dureza, também imprescindíveis para compor sua personagem.

E é por tudo isso que Remi Weekes entra para a minha lista de grandes promessas do cinema contemporâneo. Vamos ficar atentos! Afinal, diante de tantas qualidades, não há dúvidas de que recomento O Que Ficou Para Trás com louvor!


17.11.20

A Hora do Pesadelo 6: Pesadelo Final, a Morte de Freddy (Freddy's Dead: The Final Nightmare)

Um homem (Freddy Krueger) de rosto queimado, camiseta de manga longa com listras horizontais verdes e vermelhas e chapéu fedora marrom com faixa preta. Está sentado com um dos pés sobre uma mesa de madeira. Com uma mão que usa luva com lâminas nos dedos, segura um controle de videogame, diz algo sorrindo e aperta um dos botões. Em primeiro plano, desfocada e à direita do enquadramento, as costas de uma televisão de tubo sobre a mesa. O ambiente é pequeno, sujo e cheio de peças metálicas enferrujadas sobre a mesa e à sua volta.

 

1991
Terror
Direção: Rachel Talalay
Roteiro: Rachel Talalay e Michael De Luca
 





Um adolescente (Shon Greenblatt) com amnésia é levado para um reformatório, cujos funcionários Maggie (Lisa Zane) e Doc (Yaphet Kotto) tentam desvendar sua origem ao tentar decifrar seus pesadelos.

Talvez você esteja se perguntando por que alguém iria escrever um texto especificamente sobre aquele que deve ser considerado o pior filme da franquia A Hora do Pesadelo. Talvez você esteja imaginando que o motivo seja justamente esculachá-lo. Porém, apesar de esse raciocínio fazer sentido, eu pretendo aqui explicar justamente o que me faz gostar tanto dele, mesmo enxergando com tranquilidade seus defeitos.

Então, para resolver logo a questão mais óbvia, vou começar pelo que todo mundo já sabe: o roteiro desse filme é um lixo. 

Ao longo de toda a franquia, foi-se construindo com maior ou menor coerência, uma série de elementos e pedaços de história que vão compondo o passado de Freddy Krueger (Robert Englund, sempre maravilhoso) e todo um imaginário relacionado a ele. Nos é dado no primeiro filme que Freddy morava na Rua Elm e era um assassino de crianças, todas moradoras daquela mesma rua, e que, após uma falha judiciária, acabou sendo solto e, em seguida, queimado vivo pelos pais das crianças. Também somos informados que ele levava suas vítimas para a "sala das caldeiras" de uma fábrica onde trabalhou, naquele momento já desativada, e que foi esse o local onde ele foi linchado. Por fim, conhecemos logo de cara a personalidade sarcástica e "irreverente" de Freddy, o qual volta em pesadelos para se vingar nos filhos daqueles que o mataram, assassinando-os com sua crueldade extravagante e bem-humorada. Ao longo das sequências, a casa de Nancy (Heather Langenkamp), protagonista do primeiro filme, localizada na Rua Elm nº 1428 de Springwood, se torna um local de importância, ao qual Freddy acaba se apegando.

Contudo, o sexto filme da franquia decide selecionar alguns desses elementos já estabelecidos, descartar outros, adicionar novas informações, realocar elementos em outras situações, criando uma história que não funciona nem como continuidade do que existia, nem como algo novo. Uma das duas mudanças mais drásticas está relacionada ao fato de Springwood, de repente, passar a ser retratada como uma cidadezinha minúscula e rural. A alteração é tão grande que em absolutamente nada lembra as locações das sequências anteriores. A outra mudança, ainda mais inesperada, sem a menor explicação e totalmente tirada do chapéu: a partir de agora nos é informado que casa nº 1428 havia sido a moradia de Freddy quando vivo. 

Para além da profusão de modificações, as incoerências e fragilidades do roteiro vão se empilhando ao longo do filme. Por exemplo, temos que, quando Maggie decide levar o rapaz desmemoriado para Springwood, ao encontrar três adolescentes fugitivos dentro da van que estavam usando, a moça entrega a chave do veículo a eles com a orientação de voltarem sozinhos para o reformatório. Ora! Eles estavam fugindo do reformatório e ela entrega a chave da van na mão deles?! Essa é a pessoa mais ingênua e crédula do mundo - o que a torna inadequada para o serviço presta. Além disso, a van era o meio de transporte dela e do menino. Como ela esperava voltar para o reformatório? 

Outra coisa que marca a franquia é protagonismo feminino, com exceção do segundo filme, mas que mesmo neste apresenta uma personagem feminina de destaque e que acaba tendo muito mais agência que o próprio protagonista. Infelizmente, o sexto filme é o que possui a protagonista mais decepcionante dentre todas. Inclusive, neste sexto filme, todos os personagens são subaproveitados, visto que o foco em desvendar o passado do Freddy é tão intenso que não se desenvolve mais nada para além disso. Os personagens são superficiais e suas relações e conflitos não são bem desenvolvidos. Em contrapartida, isso foi muito bem trabalhado no primeiro filme, sendo um dos motivos para ter se tornado tão marcante, e foi algo que tentou-se manter nas primeiras sequências, mas totalmente abandonado aqui em preterimento do Freddy.

Certo, então qual o motivo de eu gostar de um filme com tantos problemas?

Primeiramente, a memória afetiva. Este foi um dos primeiros filmes da franquia que assisti, ainda pré-adolescente. E sempre que o nome Freddy Krueger é mencionado, automaticamente me vem à memória a cena em que ele mata um dos adolescentes jogando videogame. Para mim, essa é uma das melhores cenas da franquia, é a chacota assumida e entregue. Salve Robert Englund! Esse filme, mais do que aterrorizar, te fará sorrir da audácia. Assim como na cena, logo no início, em que Freddy aparece vestido de bruxa e voando em uma vassoura. Menos descaradamente debochada, outro momento realmente muito bom é toda a sequencia do pesadelo do garoto que possui deficiência auditiva. 

É claro que a memória afetiva é uma argumentação subjetiva. Mas, posso estar afirmando o óbvio mais uma vez aqui, a arte é subjetiva. Por mais análises técnicas que se possa fazer, ainda assim, a subjetividade de quem está consumindo a arte vai pesar muito. E, sim, A Hora do Pesadelo 6 também é arte. De qualquer forma, as cenas mencionadas possuem um bom humor latente e são bem filmadas, de modo que é normal que conquistem com facilidade o coração de uma criança. Talvez se eu tivesse assistido pela primeira vez o filme já adulta, não aconteceria de ter me marcado tanto - ou talvez aconteceria, visto que até hoje gosto de filmes assumidamente galhofas.

Aliás, este é o primeiro longa dirigido por Rachel Talalay, sendo que em seguida ela dirigiu outros dois filmes, O Fantasma da Máquina em 1993, estrelado por Karen Allen (minha eterna Marion Ravenwood, de Os Caçadores da Arca Perdida) e Tank Girl, Detonando o Futuro em 1995. Depois, ela passou os anos seguintes totalmente dedicada à direção de muitas séries e alguns filmes para a televisão. Finalmente, agora em 2020, ela lançou seu quarto longa para o cinema, chamado Manual de Caça a Monstros, com foco no público infanto-juvenil. O caso é que parece que o tema mais infantilizado parece atraí-la, o que pode explicar esse ar mais exageradamente gozador que encontramos em A Hora do Pesadelo 6.

Além de considerar a direção de Rachel bastante satisfatória, a ambientação, a trilha-sonora e até mesmo a produção são muito bem feitos se formos comparar com outros filmes da franquia, como por exemplo o quarto (no qual em um pesadelo que se passa num cenário de HQ, onde tudo é branco, preto e cinza, o pulso "colorido" do Freddy fica à mostra quando ele estica o braço e a manga da camiseta se retrai). A cidade, apesar de ter se transformado em outro lugar, e a casa do Freddy (que já também deixa de ter a decoração de quando era apenas casa da Nancy), demonstram uma preocupação mais apurada com a direção de arte, criando ambientes muito interessantes. Inclusive, gosto muito quando um personagem compara essa "nova" Springwood a Twin Peaks (locação e título da minha série preferida de todos os tempos, que possui toda uma atmosfera e personagens que provocam muita estranheza).

Vale notar que, pela segunda vez, a franquia apresenta personagens negros com certo destaque e que não morrem no final. O terceiro filme havia trazido dois personagens: Kincaid (Ken Sagoes), que infelizmente morre nos primeiros minutos do filme seguinte, e Max (Laurence Fishborne!), que inclusive foge do estereótipo do alívio cômico. Agora, no sexto, temos Doc que, apesar de não ter tanto tempo de tela, também não surge como alívio cômico e sobrevive ao final da história. Para uma franquia de filmes que foram quase todos lançados nos anos 1980, chega a ser impressionante.

Agora, voltando um pouco à questão da memória afetiva, vou avançar para o trecho final de A Hora do Pesadelo 6. Quando esse filme chegou aos cinemas da minha cidade, não se falava em outra coisa. Ele era alardeado como o "Freddy Krueger 3D" e todos os meus colegas da escola foram à estreia - exceto euzinha, pois ainda não tinha sequer completado 10 anos de idade. Só pude assisti-lo quando saiu nas locadoras, provavelmente cerca de um ano depois. 

E, bem, a parte 3D se concentra nos 15 minutos finais: usando de um recurso quase pedagógico, em seu pesadelo Maggie coloca um par de óculos 3D (daqueles antigos, em que as lentes são de celofane e uma é azul e a outra vermelha) para poder acessar a mente de Freddy (?!). Adoro que o modo como ela testa para ver se os óculos estão "funcionando" é aproximar e afastar a mão do rosto (?!). Nas cenas seguintes, seres mitológicos parecendo pequenas cobras (ou minhocas gordinhas e cabeçudas) voam pela tela, Freddy aproxima sua luva-garra da câmera e toda uma sorte de truques típicos são criados para divertir o público ansioso pelo, então, novo recurso cinematográfico. Tudo é ridiculamente maravilhoso e torço para que um dia algum cinema decida exibir novamente essa pérola para que eu possa apreciar essa obra em todo o seu esplendor.

Chego, então, ao fim também do meu texto. Reitero que temos aqui um dos mais execrados filmes de uma franquia muito querida, mas tentei fazer minha defesa para que, quem sabe, mais alguém possa enxergá-lo com mais complacência. 

9.11.20

Relic

Em segundo plano, uma jovem loira de cabelos lisos cortados à altura do queixo e uma mulher de cabelos castanhos lisos cortados à altura dos ombros, estão lado a lado em um balcão que divide sala e cozinha. A segunda lê algo em um papel, enquanto a primeira olha apreensiva para a frente, para uma senhora que tem seu rosto de perfil desfocado em primeiro plano e à direita da cena. A cozinha, ao fundo, é um ambiente cheio de objetos e utensílios espalhados em estantes.

2020
Terror, Mistério, Drama
Direção: Natalie Erika James
Roteiro: Natalie Erika James, Christian White
 




Edna (Robyn Nevin) é uma senhora que desaparece de sua casa, onde mora sozinha, após manifestar nos últimos meses perda de memória e confusão. Kay (Emily Mortimer) e Sam (Bella Heathcote), respectivamente sua filha e sua neta, vêm para a sua casa no intuito de encontrá-la e enfrentar as dificuldades de relacionamento intensificadas pela doença.

Antes de mais nada, gostaria de avisar que esse texto trará informações sobre o desenvolvimento e final da história, pois a minha intenção hoje é justamente falar sobre como o filme me tocou em suas diversas camadas, sendo indispensável, para isso, mencionar o desfecho. De qualquer forma, essas informações estarão devidamente assinaladas, então pode ler sem medo.

Talvez por eu ter uma ligação muito forte com minha mãe, talvez por, de alguma forma, Edna ter me lembrado muito a minha avó materna, talvez por se apresentar a identidade de uma pessoa tão atrelada à sua casa (sendo eu arquiteta). O fato é que Relic me emocionou muito. 

Para mim, ele ressoa como as manchas de uma vida imperfeita, que muitas vezes acabam sendo expostas quando essa vida vai se aproximando do fim. E, ao mesmo tempo e em uma camada mais evidente, como a dificuldade de se enfrentar a demência de um familiar próximo - e a sua própria.

Em seus últimos anos, minha avó morava sozinha em seu apartamento. Ela se manteve lúcida até pouco antes de falecer, mas, assim como Edna (e observadas as devidas proporções), ela gostava de guardar coisas. Não chegava ao ponto de ser considerada uma acumuladora, mas seus armários estavam sempre repletos de coisas que ela foi aguardando ao longo de uma vida inteira. Quando ela faleceu, minha mãe e minhas tias tiveram que se embrenhar naquele mundo de lembranças; separar, organizar, escarafunchar. Eu só posso imaginar quão difícil é para uma filha ter que mergulhar na vida de uma mãe que está partindo ou acabou de partir. Mini spoiler: Assim, quando Sam e Kay entram em um armário e literalmente se perdem lá dentro, era só nisso que eu pensava.

Para além dessa dificuldade, o mofo, as manchas e a sombra, que estão sempre presentes na casa e no corpo de Edna (como se um fosse extensão do outro), me dizem que há acontecimentos em seu passado ou pensamentos em seu coração que estão passando a consumi-la, conforme se aproxima o seu fim. A amargura da relação entre Edna e Kay, os pesadelos de Kay e o fantasma que está sempre à espreita são indícios, ao meu ver, de que uma série de incidentes foram enterrados, abafados e, agora, começam a emergir.

Os mesmos elementos (mofo, manchas e sombra) também me dizem que a doença de Edna a está consumindo e contaminando o relacionamento com filha e neta. Isso fica evidente nos episódios de agressividade para com Sam, nos lapsos de memória. Sam diz a Kay, quando esta menciona colocar a mãe em um asilo, que se Edna trocou suas fraldas quando Kay era pequena, era dever da filha fazer o mesmo pela mãe agora. Contudo, pouco depois, Sam vai sentir na própria pele que uma senhora de idade e uma criança não são a mesma coisa e não demandam os mesmos esforços, sejam físicos ou psicológicos.

Essas questões todas são trabalhadas na chave do horror. E, mesmo se visto apenas considerando esta primeira camada, Relic já é um tremendo filme do gênero. As cenas são de fato assustadoras, o labirinto do armário é de fato desesperador e claustrofóbico, as manchas no corpo e a auto mutilação são enervantes. A fotografia é majoritariamente escura; a ambientação da casa muito bem feita, dando a ideia de ela própria ser algo vivo que está apodrecendo a olhos vistos; a silhueta que está quase sempre em algum cantinho do enquadramento; os sons próprios de uma casa antiga, mas exagerados até o limite do "tem mais alguém nesse lugar?"; a trilha-sonora bastante orgânica com relação às cenas, ela, também, viva.

Então, chega-se ao final da história, e vamos de spoiler. Após uma sequência violenta e aterrorizante para as personagens (e para nós), após tantas feridas abertas, Kay pega sua mãe no colo e a leva para o quarto, onde termina de expor suas necroses, aceitando-as todas. Edna, nesse momento, já não é mais um monstro, já não tem mais o que esconder. Está entregue à delicadeza da filha, que cuida, ampara, perdoa. É quando Sam supera seus medos, compreende o que move sua mãe e retorna para elas. E elas se deitam na cama, quietinhas, as três gerações, amparando-se. É um final belíssimo e tenho que segurar o choro quando me lembro dele - mas não foi filmado ou montado de forma excessivamente dramática, nem pesada demais na trilha-sonora.

O trio de atrizes está muito bem em seus papéis. Eu não sou uma grande fã de Emily Mortimer, mas acho que seus olhos tristes conseguiram trazer o tom exato da melancolia que a personagem precisava. E Robyn Nevin consegue ser ameaçadora e forte, ao mesmo tempo em que doce e frágil. Gosto muito da cena em que ela dança na sala com a neta (novamente, me lembrou a minha avó).

O modo como a diretora Natalie Erika James equilibra tão bem o terror mais explícito com a sensibilidade do drama me remete aos filmes de terror japoneses e sul-coreanos, como Água Negra (2002) e Medo (2003). Spoiler: Um indicativo dessa influência é uma cena em que Edna está murmurando sozinha no hall escuro e caminhando lentamente em direção à porta de entrada da casa, quando Kay a chama. Nesse momento, Edna afasta os cabelos e levanta a cabeça, mostrando que estava andando para trás, de costas para a porta. A ideia do cabelo liso e longo cobrindo o rosto, seja proposital ou não, imediatamente me evoca o cinema japonês - bem como a água e os espelhos, muito presentes ao longo do longa. Pensando bem, a própria fotografia e efeitos sonoros parecem também corroborar essa minha impressão.

Relic é o longa-metragem de estreia de Natalie na direção e se mostra um trabalho bastante coeso, encorpado e objetivo. A partir de agora, estarei muito atenta para os projetos futuros dessa mulher que promete ser um grande nome dessa nova geração de cineastas dedicados ao terror.

...

Atualização

27.11.20

Eu sinalizei mais especificamente no texto onde estão os spoilers, para que pessoas que não viram o filme ainda possam ler.

24.7.20

Chuva É Cantoria na Aldeia dos Mortos

Imagem azulada e escura de um rapaz indígena de cabelo preto liso à altura dos ombros, olhos levemente puxados, nariz largo, boca fina e bem desenhada, pele acobreada. Ele está de costas, mas torce o corpo para olhar para trás. Preenchendo o fundo da imagem há uma grande cachoeira.



2018
Documentário, Drama
Direção: Renée Nader Messora, João Salaviza
Roteiro: Renée Nader Messora, João Salaviza





Ihjãc entra em contato com seu falecido pai certa madrugada, à beira de um rio. O espírito do pai lhe pede para preparar a tradicional festa de fim de luto, para que ele possa seguir adiante. Ihjãc promete atender ao pai, mas tem medo que sua visão signifique que está se tornando um pajé.

Renée Nader Messora acompanha a aldeia krahô Pedra Branca, em Tocantins, desde 2009, quando começou a gravar vídeos de ritos e cantigas desse povo. Porém, Chuva É Cantoria na Aldeia dos Mortos fica entre fábula e documentário. É uma história sobre um indígena em uma aldeia, mas é também uma história universal sobre o luto, sobre a perda, sobre o medo. Retrata, desmistifica e nos aproxima de uma realidade que poucos não-indígenas conhecem.

Com ritmo lento que combina com o retrato dramático daquele momento (ficcional) da vida de Ihjãc e de sua esposa Krôtô, o filme começa e termina como uma poesia. Nessas duas sequências (inicial e final), a belíssima fotografia azulada é eficiente em nos passar o tom da história contada. 

Ihjãc está sempre melancólico e pensativo, mesmo quando em ação na roça de seu pai, carregando o peso da responsabilidade e de um futuro que ele não acredita estar preparado para enfrentar (enquanto novo pajé da aldeia); Krôtô é inteligente e decidida, segurando as pontas com a colheita e o filho pequeno, Tepto, enquanto seu marido passa por um momento depressivo. Ele tem medo e ela tenta compreender e apoiar.

Na aldeia, o foco se divide entre o rapaz e a esposa, mostrando o dia-a-dia daquele povo, seus costumes e crenças. Mas quando em determinado momento Ihjãc decide ir para a cidade em busca de ajuda para curar o mal que já passa a se manifestar fisicamente em seu corpo, a câmera o acompanha, e só a ele, por todo o tempo. E durante esse período, passamos a conhecer, por consequência, como se dá a relação entre o indígena e a cidade.

Ainda que o longa não retrate os conflitos que existem nessa relação entre indígena e homem branco, dando até certa impressão de ser um convívio prioritariamente pacífico e harmonioso, há pequenos indícios de que não é esse o caso. Talvez sejam indícios pequenos demais para contemplar a complexidade dessa relação, contudo, é importante termos em mente o tipo de história que quer ser contada e que, possivelmente, a representação mais fiel dessa relação criaria um ruído nessa história.

Nascido de uma parceria luso-brasileira, Chuva É Cantoria na Aldeia dos Mortos ganhou o prêmio especial do júri da mostra Um Certo Olhar, em Cannes, em 2018.


...

* Coincidentemente, comecei a ler essa semana o livro “Escritos Indígenas: Uma Antologia”, que reúne diversos contos e textos de autores indígenas de todo o Brasil. Tem sido uma leitura muito rica, diversificada e agradável. Recomendo demais!

11.7.20

A Estranha Cor das Lágrimas do seu Corpo (L'étrange couleur des larmes de ton corps)

Em close de rosto num fundo preto, uma mulher branca joga a cabeça para trás, fazendo voar o cabelo liso e preto. O que parecem ser diversas gotas vermelhas brilham espalhadas pela imagem.

2013
Terror, Mistério, Giallo
Direção: Hélène Cattet, Bruno Forzani
Roteiro: Hélène Cattet, Bruno Forzani



Dan Kristensen (Klaus Tange) chega em casa após uma viagem e percebe que sua esposa está desaparecida desde sua partida. Assim, inicia-se uma investigação onde histórias paralelas se entrelaçam e não se sabe o que é sonho e o que é realidade.

A sinopse que escrevi é uma tentativa de racionalizar algo que não se pauta em momento algum na racionalidade. O filme é psicodélico, onírico, uma explosão de cores e imagens. A abstração é tão constante, rompendo o frágil fio narrativo a todo instante, que chega a ser em alguns momentos cansativo.

Hélène Cattet e Bruno Forzani fazem uma evidente homenagem ao giallo¹ italiano, mas, sem se prenderem demais ao gênero, trazem frescor e diversas outras inspirações cinematográficas. Uma das características que aproxima o longa do giallo, para além do apuro estético e do tema, é a trilha-sonora que muitas vezes até mesmo mimetiza as músicas dos filmes de 1970. Outras características perpassam pelo uso das cores e pela belíssima locação em estilo art nouveau. 

Eu já havia assistido ao longa em 2017 e, agora na revisão, eu gostei ainda mais. Apesar de minhas limitações, consigo reconhecer para além do giallo, muito do surrealismo e até mesmo algo do expressionismo alemão. O crítico de cinema Pablo Villaça disse certa vez que "Se Buñuel e David Lynch tivessem um filho que tomasse LSD e fizesse um giallo, o resultado seria A Estranha Cor das Lágrimas do seu Corpo" e tenho dificuldade de encontrar outra maneira de resumir tão bem o que é esse filme.

Imagem em preto e branco do rosto (apenas dos olhos para cima) de uma moça branca com os cabelos lisos, longos e pretos bem espalhados sobre o travesseiro onde sua cabeça está apoiada.

Contudo, está longe de ser apenas um amontoado de cenas que não querem dizer nada. Consigo ver nele comentários sobre o voyeurismo e a objetificação do corpo feminino, ao mesmo tempo em que trata da libertação feminina, de sua redescoberta enquanto alguém que tem seus próprios desejos e não se vê mais na posição de agradar ao homem mais do que a si mesma (inclusive colocando o homem como supérfluo). Trata a mulher como atora (a palavra não existe, mas atriz não cabe no sentido que quero expressar - “dona da ação”) e propulsora da história, enquanto o homem está perdido e se deixando levar. A mulher começa exterminando a sua imagem como é vista tradicionalmente (principalmente no giallo) e toma a narrativa para si, se reconstrói e anula o homem. A mulher, todas elas, é Laura (“vitoriosa”, “triunfadora”). 

E não se preocupe com possíveis spoilers no meu texto, pois, apesar de o giallo tradicionalmente ser calcado no mistério, pensar no mistério como motivação para assistir a esse filme é como acreditar que saber de antemão o final de 2001: Uma Odisseia no Espaço estragaria a experiência de assisti-lo - guardadas as devidas proporções. 

Ainda assim, muito pautado no grotesco e com algumas cenas que podem ser interpretadas como violência exagerada contra o corpo feminino, em diversos momentos eu diria não ser um filme palatável para muitas pessoas. Eu, no entanto, recomendo A Estranha Cor das Lágrimas do seu Corpo a todo e qualquer amante do terror que esteja aberto a uma experiência diferente e intensa.

O perfil do rosto de um homem branco está duplicado. Ele recebe em suas mãos uma xícara entregue por uma mão feminina enluvada em renda preta. O entorno está escuro e desfocado, com apenas um objeto não identificável de decoração (talvez uma moldura) iluminado em desfoque com um tom amarelo claro.

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* Recomendo sobre esse filme o texto As mudanças de gênero e o neo-giallo, por Andrey Lehnemann. 

¹ Falei um pouco mais sobre o giallo no texto de A Moça do Pijama Amarelo.