3.12.20

Especial Daria Nicolodi - parte 1

Preto e branco. Uma mulher branca de cabelos lisos castanhos e usando franja que se espalha na testa deixando a pele um pouco descoberta. Seu rosto está em close e quase de perfil. Segura algo com a mão esquerda e cheia de anéis - possivelmente é um espelho, para o qual ela olha concentrada. Na mão direita, um lápis de maquiagem.
Daria Nicolodi por Paolo Monti em 1970.
Eu tenho uma lista de mulheres no cinema que me inspiram, mas por algumas tenho um carinho mais especial. Daria Nicolodi, atriz e roteirista, é uma dessas mulheres. Faleceu aos 70 anos, no dia 26 de novembro deste ano. A notícia me pegou no dia seguinte, quando eu estava chegando ao trabalho, e deixou aquele meu dia mais cinza.

Nasceu em Florença, Itália, filha de um advogado e de uma estudiosa de línguas antigas formada em filosofia. Seu avô materno era pianista e compositor. Talvez por essa veia materna, Daria desenvolveu certa afinidade com línguas e música - falava 8 idiomas e participou da composição de algumas trilhas-sonoras dos filmes em que atuou¹. Frequentou a Academia Nacional de Arte Dramática em Roma e iniciou sua carreira pelo teatro antes de estrear no cinema².

Nunca foi muito de dar entrevistas³ e passou a ficar mais reclusa após a morte de sua filha mais velha, Anna, fruto de um breve relacionamento com o escultor Mario Ceroli. Anna faleceu em 1994 em um acidente automobilístico⁴. Ainda assim, mesmo reservada, Nicolodi possuía uma conta no Twitter, onde postava fotos de flores, compartilhava imagens vinculadas às artes plásticas, e conversava com fãs sobre alguns de seus trabalhos.

Descobri Daria Nicolodi em meados de 2012 em um filme que veio a se tornar um dos meus preferidos da vida: Prelúdio Para Matar (1975), o qual já foi mencionado diversas vezes nesse blog. Desde o primeiro momento, essa mulher me cativou sobremaneira e passei a notar sua presença nos gialli que assisti depois, geralmente dirigidos por Dario Argento, com quem manteve um relacionamento amoroso por cerca de 10 anos. 

Mas não foi só sobre os filmes do Dario Argento que Daria construiu sua carreira. O primeiro filme no qual atuou foi um drama de guerra chamado A Vontade de um General (1970). Em seguida, faria parte do elenco do drama Salomé (1972), mas estava ocupada com uma peça de teatro e não pôde participar das filmagens, apesar de seu nome constar nos créditos por um gracejo do diretor Carmelo Bene⁵. 

Ademais, ela fez outros filmes de drama e cinco comédias - o que não me surpreende, haja visto seu timming cômico afiado. Destaco dentre elas Maccheroni (1985), no qual contracenou com Jack Lemmon e Marcello Mastroianni. No terror, também atuou no primeiro longa dirigido por sua filha, Asia Argento, Scarlet Diva (2000) e no último de Mario Bava, Shock (1977). 

Com Dario Argento, a lista é um pouco mais longa. Apesar de o relacionamento ter terminado em 1985, ela continuou atuando em alguns de seus filmes até 2007, quando ele concluiu a terceira parte da trilogia das mães. No total, foram 8 obras de Argento das quais ela participou. E, apesar de raramente receber os créditos, ela não só atuava em seus filmes¹. Nicolodi afirmava que escreveu com Argento os roteiros de Suspiria (1977) e de A Mansão do Inferno (1980), além de ter colaborado com alguns diálogos de Prelúdio Para Matar, participado da composição da trilha-sonora deste último e de Suspiria, e até mesmo da escolha de elenco de Phenomena (1985).

Assim, de modo a abranger um pouco da carreira dela tanto como roteirista quanto como atriz, decidi separar esse especial em três partes. Hoje ainda pincelarei brevemente sobre aqueles dos quais já falei em outras resenhas: Suspiria e A Mansão do Inferno; e sobre o outro por cujo roteiro ela não foi creditada: Il Gatto Nero (1989). Na próxima semana, falarei de alguns filmes que ela estrelou e não possuem vínculo com Dario Argento: Paganini Horror (1989), Shock Maccheroni. E na última parte, me concentrarei em outros dois do Argento em que ela atuou: Tenebre (1982) e Prelúdio Para Matar.



Uma mulher branca (Daria Nicolodi) de cabelo castanho liso e com granja cortada reta cobrindo perfeitamente a testa. Ela está de perfil, com seu rosto em close. A iluminação que incide sobre ela é azulada e ao fundo, uma parede vermelha com uma janelinha fina e comprida em estilo art decò e com os vidros deixando passar uma luz azul.Suspiria / A Mansão do Inferno


1977 / 1980
Terror, Giallo
Direção: Dario Argento
Roteiro: Dario Argento e Daria Nicolodi 


Daria costumava dizer que a verdadeira autora de Suspiria era a sua avó Yvonne¹. A primeira ideia do filme surgiu após Nicolodi mencionar a Argento sobre a história que sua avó costumava lhe contar quando era criança: Yvonne alegava que teria estudado em uma academia de piano em que as professoras estariam ensinando, além de artes, magia negra². Dario gostou da história e, juntos, trabalharam no roteiro, que também teve como inspiração o ensaio "Suspiria de Profundis" de Thomas De Quincey. Além disso, a sequência final do roteiro foi baseada em um sonho que Daria teria tido quando morava em Los Angeles⁴.

Apesar de ser a parte mais criticada do filme, por ser excessivamente simplório e com alguns "furos", o roteiro é, a bem da verdade, bastante interessante e eu sempre defendi que era o suficiente para obra de arte imortal que Suspiria viria a se tornar. Os diálogos infantilizados, por exemplo, se dão devido ao fato de que originalmente a ideia seria que as estudantes da Academia de Dança fossem crianças de 8 a 10 anos⁶. Mas a mística das Três Mães, a ideia da arte vinculada com a magia, o ar fabulesco, são qualidades que o filme tem e que devem não só à direção precisa de Argento, mas ao próprio roteiro.

E se você acha que a contribuição de Daria se encerra na criação do roteiro, pode se sentar. Ela alega que participou, ainda, da composição da excelente trilha-sonora junto com a banda Goblin!¹ Ademais, apesar de não ter atuado no filme, é dela a voz de Helena Markos, a Mater Suspiriorum (Mãe dos Suspiros)⁶.

Não obstante a participação inegável de Nicolodi no roteiro de Suspiria, foi uma luta para conseguir convencer Dario Argento a lhe dar seus devidos créditos. E foi por não querer passar pela mesma provação que, mesmo o próprio Argento confessando ter trabalhado no roteiro de A Mansão do Inferno a partir de uma história escrita por ela, Nicolodi acabou deixando passar a falta de seu nome nos créditos como roteirista do segundo filme⁷. 

Ainda assim, nos últimos anos, em diversas oportunidades ela fez questão de afirmar sua participação crucial na criação da história de A Mansão do Inferno, argumentando, inclusive, que os dois filmes que ela roteirizou com Dario Argento são incomparáveis em sua carreira e que, até então, os filmes dele eram sempre sobre histórias de detetive¹. Não posso negar que faz sentido. Mas, hei, eu já estava convencida antes mesmo desse argumento, tendo em vista que Dario Argento não tem um bom histórico em se tratando de dar os devidos créditos às pessoas - basta procurar no IMDb o nome de Mario Bava na lista da equipe técnica do próprio A Mansão do Inferno.



Uma sala ampla e escura, com mobiliário antigo coberto de teias de aranha e parca iluminação que mistura o vermelho e o azul. Uma mulher está parada à entrada da sala, em frente a uma enorme porta de metal e vidro. Como parte da luz (azulada) entra pela porta, a mulher se torna quase apenas uma silhueta.
Il gatto nero


1989
Terror, Fantasia, Drama
Direção: Luigi Cozzi
Roteiro: Daria Nicolodi e Luigi Cozzi




Daria Nicolodi escreveu esse roteiro para ser a terceira parte da Trilogia das Mães, mas o produtor não estava interessado e Dario Argento decidiu focar em seu próximo filme, Tenebre⁸. Bobo ele, pois absolutamente qualquer coisa teria sido uma ideia melhor do que o que veio de fato a se tornar o último filme da trilogia (sem a participação da Daria no roteiro, diga-se de passagem). 

Nicolodi, alguns anos depois, entregou o roteiro a Luigi Cozzi, na esperança de que este resolvesse dirigí-lo. Contudo, Cozzi fez alterações no roteiro para transformá-lo mais em uma homenagem aos dois primeiros filmes, ao invés de uma sequência. Quando Daria viu o resultado, decidiu abandonar o projeto⁸. Certa ela, pois a colcha de retalhos que Il gatto nero (também conhecido como Demon 6: De Profundis) virou, chega a dar vergonha.

Uma das únicas coisas interessantes no filme é o uso de metalinguagem, que chega a lembrar um pouco O Novo Pesadelo: O Retorno de Freddy Krueger (1994). No entanto, para além das modificações de Cozzi no roteiro, como o CEO da distribuidora havia decidido por conta própria vender o filme como uma obra baseada em um conto de Edgar Alan Poe, uma das soluções "brilhantemente" escolhidas foi inserir cenas de gatos pretos em uma história que nada tinha a ver com o conto. 

Tudo no filme é tão mal realizado, que beira o ridículo. Os cenários não trazem nenhuma originalidade, a inserção da trilha-sonora nas cenas é abrupta e totalmente destoante, a maquiagem da bruxa Levana é muito muito muito ruim. Cozzi tenta, ainda, emular a iluminação chapada e colorida de Argento, mas o resultado é um fiasco, com luzes oscilantes e pulsantes que não compõem uma ambiência assustadora ou onírica, apenas incomodam (e não do jeito que um filme de terror gostaria de incomodar).

Provavelmente, com a direção de Argento e a ideia original de Nicolodi, este teria se tornado um ótimo encerramento para a trilogia das mães: melhor que O Retorno da Maldição: A Mãe das Lágrimas e muito melhor que Il gatto nero. Infelizmente, nunca saberemos.

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parte 2 estará disponível aqui a partir do dia 11/12/2020.



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¹ Seleção de tuítes da Daria Nicolodi. @NicolodiDaria. In: Twitter.
³ FOTI, Titti Giuliani. Daria Nicolodi: "La mia svolta? Fare la nonna". LA NAZIONE, Firenze, 21 set. 2014
Daria Nicolodi. In: Wikipedia : L'enciclopedia libera.
⁵ FOSCHINI, Francesco. Daria Nicolodi, l‘importante non è raccontarsiIl manifesto, 4 jul. 2020.
⁶ Suspiria (1977): TriviaIn: IMDb.
⁸ The Black Cat (1989)TriviaIn: IMDb.

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