26.6.20

A Moça do Pijama Amarelo (La Ragazza dal Pigiama Giallo)

Em primeiro plano, um rapaz banhado em luz vermelha segura uma espingarda de brinquedo e mira em um totem de arcade. Em segundo plano, no centro da imagem, o investigador idoso com sobretudo e chapéu caminha vindo da porta de entrada em direção ao rapaz. A fachada e a porta de entrada são de vidro, mostrando a rua e o dia claro; do lado de dentro, diversos filiperamas e pessoas jovens.





1978
Mistério, Suspense, Giallo
Direção: Flavio Mogherini
Roteiro: Flavio Mogherini e Rafael Sánchez Campoy




Thompson (Ray Milland), um inspetor aposentado na Austrália, fica sabendo sobre o assassinato de uma jovem e consegue autorização para participar paralelamente das investigações.

Cerca de dez anos atrás, eu descobri o giallo italiano¹. Trata-se de um subgênero do terror, ou praticamente um gênero à parte, em uma mistura de terror com mistério (principalmente policial). Nasceu enquanto cinema na Itália na década de 1960, atingindo talvez seu auge na década seguinte. 

Existem elementos que são comuns aos gialli, ainda que não seja uma regra possuir todos: a trama gira em torno de um assassino serial (que mata preferencialmente mulheres); as armas do assassino são facas ou objetos cortantes e/ou pontiagudos; o assassino usa luvas de couro pretas; as mulheres são hipersexualizadas e objetificadas, suas mortes são estilizadas e fetichizadas; a estética se sobrepõe ao conteúdo (locações, iluminação, enquadramento costumam ser mais valorizados do que o roteiro e o desenvolvimento dos personagens); um homem, que não necessariamente é um detetive profissional, irá investigar o crime; são filmes que não são muito longos, mas são lentos, cheios de elementos e confusos.

Esse gênero me conquistou muito rápido por causa dessa ligação forte com as histórias policiais, pois me remetem a uma memória afetiva que envolve meus avós paternos, em especial a minha avó Nena. Ela não apenas plantou em mim a sementinha do amor pelo terror já na minha infância, como também a sementinha do amor pelo suspense policial. Eu tenho aqui no meu íntimo que ela teria se apaixonado pelo giallo junto comigo, se estivesse viva. Então, quando assisto a esses filmes, sinto como se ela estivesse por perto. 

Opa, quase dei uma choradinha agora. Isso está virando um diário e eu ainda não comecei a falar sobre o filme que dá nome ao texto. Então vamos seguir adiante.

Pelos motivos já mencionados, alguns gialli acabaram se tornando meus "confort movies" e nas últimas semanas cresceu a vontade de conhecer novos títulos. Foi assim que, em meio a algumas bombas cinematográficas, encontrei A Moça do Pijama Amarelo.

Não se trata de um filme perfeito, longe disso. Propõe situações completamente absurdas, como: o Inspetor Thompson não respeita nenhum tipo de procedimento e autoridade, apesar de já estar aposentado e sequer oficialmente estar ligado à investigação, ele apreende provas sem o menor cuidado e esconde dos investigadores; o inspetor oficialmente responsável conduz depoimentos e usa de violência para obter confissões; o corpo nu da vítima é colocado em uma espécie de vitrine para ficar exposto na esperança de alguém o identificar (se não bastasse, a posição em que o corpo é colocado faz parecer que está posando para uma revista!). Contudo, é muito comum encontrar esse tipo de situação em filmes da época. 

Além do mistério policial, A Moça do Pijama Amarelo possui outros elementos que o identificam como um giallo. Um deles, que pode ser percebido por um dos itens comentados no parágrafo acima, é a exploração do corpo feminino. Outro é o excesso de elementos, personagens e histórias. Entretanto, paralelamente à investigação, o roteiro dá grande enfoque a uma personagem chamada Glenda (Dalila Di Lazzaro), e o modo como a história da personagem se interligará à investigação é algo que foge do padrão e traz um diferencial importante. Além disso, apesar de Glenda participar da cena mais grotesca do filme² (e é até bom que seja grotesca, pois geralmente esse tipo de cena em outros filmes é tratada com certa fetichização), me agrada muito que seja uma personagem interessante e que o roteiro a desenvolva em toda sua complexidade, mostrando suas contradições e seu sofrimento.

Outra característica marcante do gênero que encontramos no filme é o fato de ser extremamente arrastado. Porém, mantendo o padrão giallo de qualidade, a paleta de cores e a iluminação são absolutamente perfeitos! Os enquadramentos, a fotografia e a trilha sonora belíssimos! Fiquei tão encantada com cada cena, que pouco me importava a sua lentidão.

No entanto, o longa se afasta do giallo ao não apostar no horror e não transformar o roteiro em um pretexto para o assassinato serial e estilizado de mulheres. Não vemos muito sangue e há, inclusive, raros momentos de suspense. E não falo isso como demérito nem elogio, mas apenas como uma característica que me surpreendeu.

Por fim, fica aqui a minha recomendação. Se você gosta de investigação policial e valoriza filmes com uma estética marcante e bem acabada, releve os absurdos e procure assistir A Moça do Pijama Amarelo.

...

¹ Se você quiser saber mais sobre o giallo, sugiro o vídeo "Você conhece o Giallo Italiano?" da Carissa Vieira.

² Quero enfatizar que seria melhor até que algumas pessoas mais sensíveis pulassem essa parte, que ocorre próxima ao final do filme - e não se preocupe, quando a cena está para começar, já é possível identificá-la e acelerá-la, pois além de extremamente desconfortável, é MUITO longa.

20.6.20

As Três Mães

Há cerca de dois anos escrevi sobre Suspiria.

Nos últimos dias, resolvi rever os outros dois filmes da trilogia das mães e ontem não pude dormir enquanto não anotasse tudo o que estava se passando pela minha cabeça. Me dedico nesse texto a falar um pouco sobre cada filme, inclusive a refilmagem de Suspiria, de 2018, relacionando-os todos entre si e com o original de 1977.


Enquanto o primeiro filme nasceu de um sonho de Daria Nicolodi, toda a ideia para a mitologia das Três Mães foi inspirada em um ensaio chamado "Suspiria de Profundis", de Thomas De Quincey.

Suspiria não é uma história, é um pretexto para cenas lindas e assustadoras. Nasceu de um sonho e se consagrou como um pesadelo belíssimo que dispensa a necessidade de fazer sentido. Sobre ele, a frase "não sei o que dizer, apenas sentir" cai como uma luva. E, se ficamos todos empolgados com a menção da tríade de bruxas, é justamente porque pouco sabemos sobre elas, mantendo-se toda a aura de mistério que as envolve. E tudo bem querer desenvolver um pouco a história nas sequências, mas infelizmente esse não é o forte de Argento.


Um cômodo iluminado com uma forte luz azul royal. Há uma janela entreaberta à esquerda, com vidro decorado com motivos florais e estilo art nouveau, uma porta aberta à frente (também com estilo art nouveau) mostra outro cômodo. No outro cômodo há uma moça amedrontada e atrás dela uma porta de madeira e vidro leitoso por onde entra uma luz vermelha.Mansão do Inferno (Inferno)


1980
Terror, Giallo
Direção: Dario Argento
Roteiro: Dario Argento e Daria Nicolodi (história - não creditado)



Em Mansão do Inferno, Dario Argento está tão preocupado e empolgado com sua mitologia, que acaba perdendo a mão naquilo que tem de melhor. Assim, na tentativa de se aprofundar no mistério das Três Mães, se prejudica. Por três motivos:

O primeiro motivo é que, apesar de se focar mais na história, ela continua não fazendo sentido. O enigma mencionado no livro "As Três Mães" que a Rose (Irene Miracle) consegue com o antiquário fala sobre três chaves para o segredo das Mães, mas as duas chaves nas quais o filme se apoia para solucionar o enigma, não solucionam absolutamente nada. SPOILER: A segunda chave leva a um cômodo submerso, que não elucida nada e nem leva a personagem adiante. A terceira chave leva a um local que o filme faz parecer ser importante, mas pelo qual Mark (Leigh McClockey) apenas passa, e que sequer é o único caminho possível para alcançar o esconderijo da bruxa.

O segundo motivo é que as melhores cenas são aquelas que justamente não avançam na narrativa. Elas existem porque são lindas e isso basta. Por exemplo, cito a cena do cômodo submerso comentada no spoiler acima; ela parece ser importante para a história, mas de fato não é - ela é importante para o filme sim, na construção do medo e por instigar mais dúvidas do que respostas. Outro exemplo é a cena do antiquário no lago/pântano/esgoto, que faz uma rima com uma cena emblemática de Suspiria (o pianista e seu cachorro) e, tal como ela, não tem serventia para a história.

O terceiro motivo é que a tríade "arquitetura - cores - música" perde um pouco a força. Menos com relação às cores e mais com relação à arquitetura e à música. A casa da bruxa é um prédio de apartamentos menos interessante do que a escola de dança; ao ser explorado em sua totalidade, as salas decoradas e coloridas dão lugar a ambientes desbotados e cheios de teias de aranha que acabam remetendo a locações mais tradicionais dentro do cinema de terror. A trilha-sonora é muito boa, principalmente a música tema, mas não possui nem de longe o impacto da do primeiro filme.

A ambientação como um todo também se perde quando, além do cenário e trilha-sonora, o elenco não é bem aproveitado. Os moradores do prédio não aparecem o suficiente para criarmos teorias sobre cada um ou para criar algum impacto quando o mistério se desvenda. Além disso, Dario Argento demora a focar no protagonista, que sequer é um personagem tão interessante quanto as outras três "quase-protagonistas" que aparecem antes dele. São três mulheres intrigantes, principalmente Elise (Daria Nicolodi), enquanto Mark está sempre inexpressivo e parecendo muitas vezes até mesmo desinteressado. É quase como se, inspirado em Psicose do Hitchcock, Argento nos quisesse ludibriar quanto a quem será o protagonista, mas se empolga tanto que repete a surpresa por outras duas vezes.

Ainda assim, A Mansão do Inferno é um ótimo filme, com cenas antológicas. Posso parecer dura em meu texto, mas é apenas porque trata-se da sequência de um dos mais importantes filmes da história do cinema de terror, sendo realmente difícil atender às expectativas e atingir o mesmo padrão.


Uma moça sobe uma escada em uma casa antiga e escura. A câmera a segue pelas costas e mostra parte do segundo pavimento. As paredes e o teto são muito decorados; à direita há janelas enormes com vitrais nas bordas inferior e superior, pelas janelas entra uma luz muito fraca. Os elementos decorativos são rebuscados, mas a iluminação não permite aprendê-los. O Retorno da Maldição: A Mãe das Lágrimas (La Terza Madre)

2007
Terror, Giallo
Direção: Dario Argento
Roteiro: Dario Argento, Jace Anderson, Adam Gierasch, Walter Fasano e Simona Simonetti


O que falar sobre A Mãe das Lágrimas? Infelizmente, o terceiro longa fecha uma trilogia que poderia ter sido perfeita, mas se resume a uma bagunça completa.

Dario Argento já é conhecido entre seus fãs por colocar muitos elementos em um único filme, mas aqui ele eleva isso a um patamar ridículo. Em meio a todo o excesso, percebo um potencial enorme, mas para ser outro filme! O roteiro praticamente não tem nada em comum com os outros dois longas que o antecedem, com exceção da presença da terceira Mãe. E, mesmo ela, pouco tem a ver com o que já vislumbramos de suas irmãs.

A começar pelo fato de que a influência da bruxa não se concentra em um prédio, ou extrapolando seus limites apenas pontualmente, mas se espalha por toda Roma. A cidade inteira vira um pandemônio! Tem bruxa para todo lado, tem fantasma, tem demônio, tem bruxa boa e tem até macaco! Enquanto passamos por uma experiência de imersão no ambiente da casa de cada Mãe nos filmes anteriores, especialmente no primeiro, envoltos pelos personagens ambíguos e pelo mistério, no terceiro filme essa situação desaparece quase por completo. Não há mais ambiguidade, o clã da bruxa já está desde o início tentando abertamente matar a protagonista. Não há mais mistério algum.

Assim, temos como grande fator destoante da trilogia a quase ausência da casa. A casa de cada Mãe que então parecia ter grande peso na mitologia, se resume neste filme a uma villa abandonada pela qual Sarah (Asia Argento) faz um tour apressado de três minutos antes de encontrar um velho, se esconder do clã (o que dura outros quatro minutos) e finalmente descer às catacumbas. O passeio pela casa, além de curto, é também feito em quase completa escuridão, de modo que quase não podemos ver a casa. Mas sugiro que você faça uma busca rápida por "la terza madre villa" e veja todo o potencial desperdiçado! Note também que, além de não ter aproveitado o interior deslumbrante dessa locação existente, Dario Argento ainda nos ofende acrescentando um par de "chifres" completamente desproporcionais no telhado beirando a fachada frontal.

As cores e músicas marcantes também são abandonados quase por completo. Em todo o filme, Argento aposta em uma iluminação mais realista (e sem graça) - e até o sangue de tinta ele substitui por algo mais real. Já a trilha-sonora em vários momentos se coloca de maneira desconexa (em algumas cenas a ausência total de música realmente faz falta).  No mencionado tour apressado, a música tem pouca importância, se resumindo a sons ominosos clichês, o ritmo acelerado dos passos é completamente frustrante e, como já dito, a iluminação não permite sequer que consigamos ver o cenário adequadamente. Não há suspense, não há clima de terror, não se cria nenhum tipo de sensação de desconforto a não ser a revolta por ser uma cena mal dirigida em absolutamente todos os sentidos!

Já as atuações são quase todas medíocres, inclusive a participação do Udo Kier como Padre Johannes. Já a participação de Daria Nicolodi é reconfortante, e Valeria Cavalli parece ser uma das poucas pessoas que sabe o que está fazendo no filme - mas o texto dos diálogos não ajuda. Uma coisa que me chama a atenção nos três filmes é que todos apresentam um personagem com deficiência física, o pianista cego no primeiro, o antiquário que precisa de muletas no segundo e o ocultista cadeirante no terceiro, sendo que este último permanece vivo para a minha grata surpresa.

Contudo, A Mãe das Lágrimas não é uma completa perda de tempo. Tem seus bons momentos, devo admitir. Além disso, Sarah não é burra (o que já é um alento em se tratando de filmes de terror!): ela tira o sapato quando precisa correr em silêncio, foge quando precisa, enfrenta quando o momento exige, é atenta.


Duas mulheres de cabelo liso e comprido (uma ruiva e outra grisalha) dançam frente à frente sobre um tapete colorido e geométrico de estilo art decò. A sala parece ser pequena e circular, a cena mostra uma parede preta com uma janela fechada por uma cortina de pano branca.
Suspiria: A Dança do Medo (Suspiria)


2018
Terror
Direção: Luca Guadagnino
Roteiro: David Kajganich




Resolvi escrever também um pouco sobre essa refilmagem porque assistindo toda a trilogia fica mais visível agora os paralelos que são feitos não só com o filme de 1977. Inclusive, sequer considero que seja uma refilmagem, mas sim uma releitura.

Ontem ficou claro para mim que o roteiro bebe muito de A Mãe das Lágrimas. A cena final de ambos os filmes é muito semelhante. Ademais, me parece que todos os religiosos/ocultistas deste foram unificados em 2018 na figura do Dr. Kemplerer (Tilda Swinton). E vou além: a própria nova Mãe dos Suspiros parece ser a união da bruxa boa (Sarah) com a bruxa má (a terceira Mãe) do Argento. Porém, Luca consegue fazer o que Argento em seu terceiro filme não foi capaz: se aprofunda na mitologia das Mães com coerência e sem perder o foco nas ambientações, no mistério, na ambiguidade.

Há quem classifique o novo filme como “pós-horror”. Eu não gosto desse termo, resumidamente porque ele pressupõe que o que vem sendo feito nos últimos anos é “melhor” do que o terror dito tradicional. Também pressupõe que o tipo de terror que está em voga atualmente (que eu chamaria mais de um terror psicológico, ou algo nesse sentido – até mesmo o termo meta-terror acho bem válido) não era feito no terror antes. E são duas premissas equivocadas. Se o modo como o Luca nos aterroriza nesse novo Suspiria é notavelmente diferente do terror mais explícito do original, isso não faz com que deixe de ser também terror em sua essência.

Em todo caso, não me aprofundarei mais a respeito desse novo filme, pois já tem um bom tempo que o assisti. Posso dizer que gosto muito dele, mas ainda prefiro o original. Acho que o Luca fez uma atualização incrível do filme para 2018, visualmente é lindo e coerente com a nova proposta. Entretanto, tenho minhas dúvidas se será um filme que irá sobreviver como um dos grandes clássicos do cinema de terror, da mesma forma que acontece com o original.