21.12.20

Especial Daria Nicolodi - parte 3

Chegamos, então, ao final desse especial dedicado a Daria Nicolodi. Caso tenha perdido, comece pela primeira parte, na qual eu escrevo sobre sua vida e carreira, depois siga para a parte 2, em que meu foco está em seu trabalho longe de Dario Argento. 

A intenção dessa série de textos sobre Daria Nicolodi, para além de fazer uma homenagem à artista, foi também trazer à luz um problema que as mulheres vinham (e continuam) enfrentando dentro da indústria cinematográfica: o apagamento, o descrédito. Nicolodi, além de atriz, contribuiu de diversas formas para os filmes dos quais participou, mas o pouco crédito que recebeu não veio sem muita insistência e luta. Não à toa sua filha Asia teria dito que ela a ensinou a "chutar as bolas"¹. Daria parecia não ter um gosto especial por brigar e lutar, mas ela foi levada a isso para não ter seu nome apagado em questões que para ela eram importantes. Ela sabia que dentro de uma indústria comandada por homens e para homens, uma mulher não seria facilmente ouvida ou levada à sério.

Daria Nicolodi é exemplo de resiliência, mas também de força de vontade e firmeza. Definitivamente, uma mulher incrível.

Assim, como não poderia ser diferente, hoje finalizo me dedicando a dois dos meus filmes preferidos estrelado por Nicolodi, ambos em parceria com seu então companheiro, Dario Argento.



Uma mulher branca (Daria Nicolodi), com os cabelos longos molhados, está gritando com as mãos apertando as laterais da cabeça. Está enquadrada do peito para cima, vestindo uma camisa bege de manga longa, parada dentro de um cômodo e em frente a uma porta ou janela branca aberta. Do lado de fora há um jardim e chove abundantemente.
Tenebre



1982
Giallo, Terror, Mistério, Suspense
Direção: Dario Argento
Roteiro: Dario Argento





Os anos passam e nossa percepção muda.

Assisti Tenebre pela primeira vez em 2012 e, de acordo com minha lembrança, era um filme do qual eu havia gostado muito. Não me lembrava, no entanto, que havia tanta coisa para não se gostar nele. É interessante porque hoje eu acho esse filme ainda melhor do que antes, e, mesmo assim, passei a gostar menos dele.

Vou começar com os problemas. Talvez o que mais me incomoda no filme é a consciência de ser sexista e ainda debochar disso. Em seu primeiro terço, a impressão que tenho é que Argento se dedicou a criar situações misóginas que chegam a destoar do que ele próprio vinha fazendo em sua carreira, em uma reação exagerada e infantil às criticas que o cinema italiano de horror, e por consequência ele mesmo, vinha recebendo. É só notar o contraste do que estou escrevendo aqui com o que você lerá abaixo sobre o próximo filme. 

E ele não se limita ao visível ataque às mulheres. A coisa fica ainda mais pesada quando a sexualidade dessas mulheres entra em jogo. Se a inspetora assistente é ridicularizada, isso piora com relação à namorada do protagonista, ainda mais com a jornalista lésbica, até culminar em uma representação que chega a ser perversa da personagem secundária bissexual.

Só a personagem de Daria Nicolodi se salva, e nem muito. Trata-se da secretária do protagonista que, apesar de extremamente eficiente e de fazer um ou dois comentários ácidos e certeiros, tem pouca relevância em termos de pensamento investigativo, com raros momentos de iniciativa e ação com relação ao desenrolar da trama. Nicolodi, por sinal, tampouco estava animada com a personagem. Inclusive, a maravilhosa cena do grito (da imagem ilustrativa) foi o resultado da Daria descontando ali as suas frustrações reais com relação às filmagens².

O roteiro tenta justificar em algumas falas do protagonista que o problema está no vilão, mas é o retrato que Argento faz das personagens pré-morte, o modo como ele entende que elas são e se comportam, o que mais me ofende. O problema não é o "vilão", o problema é como possivelmente o filme reflete o próprio cineasta. Ademais, Argento parece ter se inspirado em uma situação real em que um fã começou a persegui-lo². SPOILER: tal qual o protagonista que no fim das contas era apenas mais um misógino fruto da mágoa pela rejeição tentando fingir-se de progressista, sinto que parece ser o caso do Argento, guardadas as devidas proporções. Assim, da mesma forma que o assassino do livro espelha o subconsciente do autor, o roteiro do filme de certa forma espelha o subconsciente do diretor - ou o consciente, pois isso tudo foi, em algum nível, proposital. 

Contudo, a atriz que faz a moça de sapato vermelho da praia é uma mulher transgênero, Eva Robins. Em 1982, quão raro isso era? Vai entender o Dario Argento. Acho que faz parte da complexidade do ser humano... 

Além disso, como eu afirmei acima, as situações mais problemáticas se concentram em sua maioria no primeiro terço do filme. Depois disso, a direção primorosa de Argento quase me faz perdoá-lo. Chega a dar raiva ser "obrigada" a gostar tanto de um filme do qual eu estava gostando tão pouco. Chamo a atenção para talvez um dos momentos que mais me colocaram embasbacada: um travelling em que a câmera vai seguindo bem em close pela fachada de uma casa moderna magnífica ao som da música tema do filme - como sempre, as escolhas de locação e a trilha-sonora continuam a ser grandes diferenciais nos filmes do diretor. Essa cena de dois minutos e meio levou três dias para ser filmada; as distribuidoras norte-americanas queriam cortá-la do filme para o lançamento nos EUA, mas felizmente Argento se recusou³.

Assim, é, talvez, com esse filme que Dario Argento fecha o combo giallo com mais precisão: tem assassino que odeia mulheres (e misoginia em geral), câmera em primeira pessoa pelo olhar do assassino, arma cortante, assassino de luva preta, protagonista homem, trama cheia de reviravoltas, a estética apurada e trilha-sonora marcante. E, de fato, o filme é uma grande homenagem ao giallo literário e aos livros de detetive em geral, visto que, por exemplo, seu protagonista é um escritor de sucesso desse gênero e chega a citar Arthur Conan Doyle. O roteiro, por sinal, é muito elaborado e bem trabalhado - só prefiro não me alongar falando sobre ele pois seria praticamente impossível não entregar spoilers de algum tipo ao fazê-lo.

Em todo caso, apesar de minhas críticas ao filme ocuparem a maior parte da resenha, Tenebre continua sim sendo um dos melhores filmes do diretor. O caso é que se eu for me alongar muito descrevendo as qualidades de Argento, soarei repetitiva, visto que são características marcantes na sua filmografia toda. Talvez o que eu ainda não mencionei é o fato de que ele filma as mortes com um senso estético tão apurado quanto o que ele usa para suas ambientações. Os enquadramentos e a montagem de duas mortes em específico são arrebatadores: na primeira destaco a visão do rosto da vítima através do rasgo da camiseta, e a antepenúltima,  pela quantidade e "comportamento" de sangue na cena.



Uma mulher branca (Daria Nicolodi) de cabelo ondulado castanho claro cortado um pouco acima dos ombros e franja reta cortada um dedo acima das sobrancelha. Tinha a mão direita abaixada junto ao tronco e a levanta até o lado do rosto enquanto gira uma piteira rapidamente entre os dedos. A câmera acompanha o movimento da mão. Ela usa camisa branca e blazer preto, lápis preto contornando os olhos e está em um como de paredes claras e bem iluminado.
Prelúdio Para Matar (Profondo Rosso)

1975
Giallo, Terror, Mistério, Suspense
Direção: Dario Argento
Roteiro: Dario Argento e Bernardino Zapponi



Possivelmente o meu filme preferido do Dario Argento - só não digo com mais certeza, pois Suspiria é uma obra-prima, mas gostar, gostar mesmo, acho que gosto mais de Prelúdio Para Matar. E é, definitivamente, o meu giallo preferido. Sendo que boa parte da minha afeição por esse filme se deve à presença de Daria Nicolodi. Sua personagem Gianna traz a leveza e irreverência perfeitas para balancear o tema pesado que há na história e, segundo a própria Daria, alguns de seus diálogos foram reescritos por ela junto com Zapponi⁴.

A versão originalmente lançada nos EUA possuía 22 minutos a menos. Foram retiradas todas as cenas de humor e as cenas de romance, além de parte da própria trama⁶. Quando penso que isso retirou boa parte das aparições de Nicolodi do filme, fica fácil entender o motivo de ele ter sido um fracasso nos EUA à época do lançamento. A propósito, a versão que se encontra com maior facilidade atualmente é a que tem simultaneamente o áudio em inglês e em italiano, porque não havia a dublagem em inglês das cenas cortadas.

Gosto de Gianna não só porque ela é divertida, mas também por ser uma personagem inteligente e ousada para a época, ainda mais em se tratando do cinema de horror italiano, o qual, como já disse, era extremamente misógino. Gianna tem voz ativa, é determinada, arrojada e ambígua. SPOILER: Ela faz os avanços para cima do personagem de David Hemmings, ela investiga e o instiga a investigar, ela até mesmo o salva. Aliás, o filme quebra com outras características inerentes ao giallo: em Prelúdio Para Matar as vítima não são sempre mulheres e o próprio assassino é um mulher. Sem contar que temos um personagem coadjuvante gay e uma personagem secundária trans, ambos tratados de forma respeitosa pelo protagonista - novamente, algo muito raro para a época e para os giallo (mas, infelizmente, o personagem gay acaba morrendo ao final). 

Mas a influência de Nicolodi vai mais longe do que sua atuação impecável e carismática. Daria foi a pessoa que sugeriu a banda Goblin para a trilha-sonora do filme⁵ e, inclusive, participou da composição das músicas⁴. E posso dizer sem titubear que a música tema de Prelúdio Para Matar é uma das melhores criações feitas para o cinema e faz parte do meu dia a dia - não à toa a retrospectiva do Spotify apontou "vintage italian soundtrack" como o 5º gênero que eu mais ouvi em 2020.

Prelúdio Para Matar, como eu disse na primeira parte desse especial, foi quando conheci e me apaixonei por Daria Nicolodi. E o mesmo pode dizer Dario Argento. Foi na audição desse filme que eles se conheceram e se apaixonaram⁵, ficando os próximos 10 anos juntos. Espero que Argento reconheça a influência positiva que Nicolodi teve em sua carreira. Para dizer o mínimo, ele deve a ela sua longa parceria de sucesso com a banda Goblin e, sem ela, não existiria Suspiria, seu maior sucesso.

Claro, Argento é (ou ao menos era) um diretor excepcional, como já afirmei outras vezes, até mesmo ali em cima. Seu senso estético e sua direção firme estão presentes desde seus primeiros trabalhos. Prelúdio Para Matar tem enquadramentos muito precisos e Dario tem uma habilidade impressionante para criar momentos de tensão a partir de poucos elementos. Além disso, o filme possui ambientações que literalmente foram inspiradas em quadros⁷ e uma mansão abandonada que até hoje é um dos meus cenários preferidos. Também destaco, pensando no sucesso de Prelúdio Para Matar, a sagacidade de Zapponi e Argento ao pensarem em mortes com as quais os espectadores pudessem estabelecer uma relação⁶ - o tipo de dor gerado por um tiro ou uma facada não é algo que muita gente já experimentou, mas queimaduras e abrasões são dores relacionáveis e que praticamente todo mundo já sentiu.

Enfim, com um ótimo elenco, personagens que quebram estereótipos de gênero e sexualidade, um roteiro bem construído, mortes antológicas, cenários inspiradíssimos (repito, aquela mansão abandonada, que coisa ma-ra-vi-lho-sa!), uma trilha-sonora absolutamente perfeita, não posso deixar de amar Prelúdio Para Matar.

Assim, finalizo minha homenagem a uma mulher incrível com esse filme igualmente incrível.



...

¹ FOSCHINI, Francesco. Daria Nicolodi, l‘importante non è raccontarsiIl manifesto, 4 jul. 2020.
² Tenebrae (film)InWikipedia : the free encyclopedia.
³ Tenebre (1982): TriviaIn: IMDb.
⁴ Seleção de tuítes da Daria Nicolodi. @NicolodiDaria. InTwitter.
⁵ FOTI, Titti Giuliani. Daria Nicolodi: "La mia svolta? Fare la nonna"LA NAZIONE, Firenze, 21 set. 2014.
⁶ Deep RedInWikipedia : the free encyclopedia.

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