20.6.20

As Três Mães

Há cerca de dois anos escrevi sobre Suspiria.

Nos últimos dias, resolvi rever os outros dois filmes da trilogia das mães e ontem não pude dormir enquanto não anotasse tudo o que estava se passando pela minha cabeça. Me dedico nesse texto a falar um pouco sobre cada filme, inclusive a refilmagem de Suspiria, de 2018, relacionando-os todos entre si e com o original de 1977.


Enquanto o primeiro filme nasceu de um sonho de Daria Nicolodi, toda a ideia para a mitologia das Três Mães foi inspirada em um ensaio chamado "Suspiria de Profundis", de Thomas De Quincey.

Suspiria não é uma história, é um pretexto para cenas lindas e assustadoras. Nasceu de um sonho e se consagrou como um pesadelo belíssimo que dispensa a necessidade de fazer sentido. Sobre ele, a frase "não sei o que dizer, apenas sentir" cai como uma luva. E, se ficamos todos empolgados com a menção da tríade de bruxas, é justamente porque pouco sabemos sobre elas, mantendo-se toda a aura de mistério que as envolve. E tudo bem querer desenvolver um pouco a história nas sequências, mas infelizmente esse não é o forte de Argento.


Um cômodo iluminado com uma forte luz azul royal. Há uma janela entreaberta à esquerda, com vidro decorado com motivos florais e estilo art nouveau, uma porta aberta à frente (também com estilo art nouveau) mostra outro cômodo. No outro cômodo há uma moça amedrontada e atrás dela uma porta de madeira e vidro leitoso por onde entra uma luz vermelha.Mansão do Inferno (Inferno)


1980
Terror, Giallo
Direção: Dario Argento
Roteiro: Dario Argento e Daria Nicolodi (história - não creditado)



Em Mansão do Inferno, Dario Argento está tão preocupado e empolgado com sua mitologia, que acaba perdendo a mão naquilo que tem de melhor. Assim, na tentativa de se aprofundar no mistério das Três Mães, se prejudica. Por três motivos:

O primeiro motivo é que, apesar de se focar mais na história, ela continua não fazendo sentido. O enigma mencionado no livro "As Três Mães" que a Rose (Irene Miracle) consegue com o antiquário fala sobre três chaves para o segredo das Mães, mas as duas chaves nas quais o filme se apoia para solucionar o enigma, não solucionam absolutamente nada. SPOILER: A segunda chave leva a um cômodo submerso, que não elucida nada e nem leva a personagem adiante. A terceira chave leva a um local que o filme faz parecer ser importante, mas pelo qual Mark (Leigh McClockey) apenas passa, e que sequer é o único caminho possível para alcançar o esconderijo da bruxa.

O segundo motivo é que as melhores cenas são aquelas que justamente não avançam na narrativa. Elas existem porque são lindas e isso basta. Por exemplo, cito a cena do cômodo submerso comentada no spoiler acima; ela parece ser importante para a história, mas de fato não é - ela é importante para o filme sim, na construção do medo e por instigar mais dúvidas do que respostas. Outro exemplo é a cena do antiquário no lago/pântano/esgoto, que faz uma rima com uma cena emblemática de Suspiria (o pianista e seu cachorro) e, tal como ela, não tem serventia para a história.

O terceiro motivo é que a tríade "arquitetura - cores - música" perde um pouco a força. Menos com relação às cores e mais com relação à arquitetura e à música. A casa da bruxa é um prédio de apartamentos menos interessante do que a escola de dança; ao ser explorado em sua totalidade, as salas decoradas e coloridas dão lugar a ambientes desbotados e cheios de teias de aranha que acabam remetendo a locações mais tradicionais dentro do cinema de terror. A trilha-sonora é muito boa, principalmente a música tema, mas não possui nem de longe o impacto da do primeiro filme.

A ambientação como um todo também se perde quando, além do cenário e trilha-sonora, o elenco não é bem aproveitado. Os moradores do prédio não aparecem o suficiente para criarmos teorias sobre cada um ou para criar algum impacto quando o mistério se desvenda. Além disso, Dario Argento demora a focar no protagonista, que sequer é um personagem tão interessante quanto as outras três "quase-protagonistas" que aparecem antes dele. São três mulheres intrigantes, principalmente Elise (Daria Nicolodi), enquanto Mark está sempre inexpressivo e parecendo muitas vezes até mesmo desinteressado. É quase como se, inspirado em Psicose do Hitchcock, Argento nos quisesse ludibriar quanto a quem será o protagonista, mas se empolga tanto que repete a surpresa por outras duas vezes.

Ainda assim, A Mansão do Inferno é um ótimo filme, com cenas antológicas. Posso parecer dura em meu texto, mas é apenas porque trata-se da sequência de um dos mais importantes filmes da história do cinema de terror, sendo realmente difícil atender às expectativas e atingir o mesmo padrão.


Uma moça sobe uma escada em uma casa antiga e escura. A câmera a segue pelas costas e mostra parte do segundo pavimento. As paredes e o teto são muito decorados; à direita há janelas enormes com vitrais nas bordas inferior e superior, pelas janelas entra uma luz muito fraca. Os elementos decorativos são rebuscados, mas a iluminação não permite aprendê-los. O Retorno da Maldição: A Mãe das Lágrimas (La Terza Madre)

2007
Terror, Giallo
Direção: Dario Argento
Roteiro: Dario Argento, Jace Anderson, Adam Gierasch, Walter Fasano e Simona Simonetti


O que falar sobre A Mãe das Lágrimas? Infelizmente, o terceiro longa fecha uma trilogia que poderia ter sido perfeita, mas se resume a uma bagunça completa.

Dario Argento já é conhecido entre seus fãs por colocar muitos elementos em um único filme, mas aqui ele eleva isso a um patamar ridículo. Em meio a todo o excesso, percebo um potencial enorme, mas para ser outro filme! O roteiro praticamente não tem nada em comum com os outros dois longas que o antecedem, com exceção da presença da terceira Mãe. E, mesmo ela, pouco tem a ver com o que já vislumbramos de suas irmãs.

A começar pelo fato de que a influência da bruxa não se concentra em um prédio, ou extrapolando seus limites apenas pontualmente, mas se espalha por toda Roma. A cidade inteira vira um pandemônio! Tem bruxa para todo lado, tem fantasma, tem demônio, tem bruxa boa e tem até macaco! Enquanto passamos por uma experiência de imersão no ambiente da casa de cada Mãe nos filmes anteriores, especialmente no primeiro, envoltos pelos personagens ambíguos e pelo mistério, no terceiro filme essa situação desaparece quase por completo. Não há mais ambiguidade, o clã da bruxa já está desde o início tentando abertamente matar a protagonista. Não há mais mistério algum.

Assim, temos como grande fator destoante da trilogia a quase ausência da casa. A casa de cada Mãe que então parecia ter grande peso na mitologia, se resume neste filme a uma villa abandonada pela qual Sarah (Asia Argento) faz um tour apressado de três minutos antes de encontrar um velho, se esconder do clã (o que dura outros quatro minutos) e finalmente descer às catacumbas. O passeio pela casa, além de curto, é também feito em quase completa escuridão, de modo que quase não podemos ver a casa. Mas sugiro que você faça uma busca rápida por "la terza madre villa" e veja todo o potencial desperdiçado! Note também que, além de não ter aproveitado o interior deslumbrante dessa locação existente, Dario Argento ainda nos ofende acrescentando um par de "chifres" completamente desproporcionais no telhado beirando a fachada frontal.

As cores e músicas marcantes também são abandonados quase por completo. Em todo o filme, Argento aposta em uma iluminação mais realista (e sem graça) - e até o sangue de tinta ele substitui por algo mais real. Já a trilha-sonora em vários momentos se coloca de maneira desconexa (em algumas cenas a ausência total de música realmente faz falta).  No mencionado tour apressado, a música tem pouca importância, se resumindo a sons ominosos clichês, o ritmo acelerado dos passos é completamente frustrante e, como já dito, a iluminação não permite sequer que consigamos ver o cenário adequadamente. Não há suspense, não há clima de terror, não se cria nenhum tipo de sensação de desconforto a não ser a revolta por ser uma cena mal dirigida em absolutamente todos os sentidos!

Já as atuações são quase todas medíocres, inclusive a participação do Udo Kier como Padre Johannes. Já a participação de Daria Nicolodi é reconfortante, e Valeria Cavalli parece ser uma das poucas pessoas que sabe o que está fazendo no filme - mas o texto dos diálogos não ajuda. Uma coisa que me chama a atenção nos três filmes é que todos apresentam um personagem com deficiência física, o pianista cego no primeiro, o antiquário que precisa de muletas no segundo e o ocultista cadeirante no terceiro, sendo que este último permanece vivo para a minha grata surpresa.

Contudo, A Mãe das Lágrimas não é uma completa perda de tempo. Tem seus bons momentos, devo admitir. Além disso, Sarah não é burra (o que já é um alento em se tratando de filmes de terror!): ela tira o sapato quando precisa correr em silêncio, foge quando precisa, enfrenta quando o momento exige, é atenta.


Duas mulheres de cabelo liso e comprido (uma ruiva e outra grisalha) dançam frente à frente sobre um tapete colorido e geométrico de estilo art decò. A sala parece ser pequena e circular, a cena mostra uma parede preta com uma janela fechada por uma cortina de pano branca.
Suspiria: A Dança do Medo (Suspiria)


2018
Terror
Direção: Luca Guadagnino
Roteiro: David Kajganich




Resolvi escrever também um pouco sobre essa refilmagem porque assistindo toda a trilogia fica mais visível agora os paralelos que são feitos não só com o filme de 1977. Inclusive, sequer considero que seja uma refilmagem, mas sim uma releitura.

Ontem ficou claro para mim que o roteiro bebe muito de A Mãe das Lágrimas. A cena final de ambos os filmes é muito semelhante. Ademais, me parece que todos os religiosos/ocultistas deste foram unificados em 2018 na figura do Dr. Kemplerer (Tilda Swinton). E vou além: a própria nova Mãe dos Suspiros parece ser a união da bruxa boa (Sarah) com a bruxa má (a terceira Mãe) do Argento. Porém, Luca consegue fazer o que Argento em seu terceiro filme não foi capaz: se aprofunda na mitologia das Mães com coerência e sem perder o foco nas ambientações, no mistério, na ambiguidade.

Há quem classifique o novo filme como “pós-horror”. Eu não gosto desse termo, resumidamente porque ele pressupõe que o que vem sendo feito nos últimos anos é “melhor” do que o terror dito tradicional. Também pressupõe que o tipo de terror que está em voga atualmente (que eu chamaria mais de um terror psicológico, ou algo nesse sentido – até mesmo o termo meta-terror acho bem válido) não era feito no terror antes. E são duas premissas equivocadas. Se o modo como o Luca nos aterroriza nesse novo Suspiria é notavelmente diferente do terror mais explícito do original, isso não faz com que deixe de ser também terror em sua essência.

Em todo caso, não me aprofundarei mais a respeito desse novo filme, pois já tem um bom tempo que o assisti. Posso dizer que gosto muito dele, mas ainda prefiro o original. Acho que o Luca fez uma atualização incrível do filme para 2018, visualmente é lindo e coerente com a nova proposta. Entretanto, tenho minhas dúvidas se será um filme que irá sobreviver como um dos grandes clássicos do cinema de terror, da mesma forma que acontece com o original.

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