9.11.20

Relic

Em segundo plano, uma jovem loira de cabelos lisos cortados à altura do queixo e uma mulher de cabelos castanhos lisos cortados à altura dos ombros, estão lado a lado em um balcão que divide sala e cozinha. A segunda lê algo em um papel, enquanto a primeira olha apreensiva para a frente, para uma senhora que tem seu rosto de perfil desfocado em primeiro plano e à direita da cena. A cozinha, ao fundo, é um ambiente cheio de objetos e utensílios espalhados em estantes.

2020
Terror, Mistério, Drama
Direção: Natalie Erika James
Roteiro: Natalie Erika James, Christian White
 




Edna (Robyn Nevin) é uma senhora que desaparece de sua casa, onde mora sozinha, após manifestar nos últimos meses perda de memória e confusão. Kay (Emily Mortimer) e Sam (Bella Heathcote), respectivamente sua filha e sua neta, vêm para a sua casa no intuito de encontrá-la e enfrentar as dificuldades de relacionamento intensificadas pela doença.

Antes de mais nada, gostaria de avisar que esse texto trará informações sobre o desenvolvimento e final da história, pois a minha intenção hoje é justamente falar sobre como o filme me tocou em suas diversas camadas, sendo indispensável, para isso, mencionar o desfecho. De qualquer forma, essas informações estarão devidamente assinaladas, então pode ler sem medo.

Talvez por eu ter uma ligação muito forte com minha mãe, talvez por, de alguma forma, Edna ter me lembrado muito a minha avó materna, talvez por se apresentar a identidade de uma pessoa tão atrelada à sua casa (sendo eu arquiteta). O fato é que Relic me emocionou muito. 

Para mim, ele ressoa como as manchas de uma vida imperfeita, que muitas vezes acabam sendo expostas quando essa vida vai se aproximando do fim. E, ao mesmo tempo e em uma camada mais evidente, como a dificuldade de se enfrentar a demência de um familiar próximo - e a sua própria.

Em seus últimos anos, minha avó morava sozinha em seu apartamento. Ela se manteve lúcida até pouco antes de falecer, mas, assim como Edna (e observadas as devidas proporções), ela gostava de guardar coisas. Não chegava ao ponto de ser considerada uma acumuladora, mas seus armários estavam sempre repletos de coisas que ela foi aguardando ao longo de uma vida inteira. Quando ela faleceu, minha mãe e minhas tias tiveram que se embrenhar naquele mundo de lembranças; separar, organizar, escarafunchar. Eu só posso imaginar quão difícil é para uma filha ter que mergulhar na vida de uma mãe que está partindo ou acabou de partir. Mini spoiler: Assim, quando Sam e Kay entram em um armário e literalmente se perdem lá dentro, era só nisso que eu pensava.

Para além dessa dificuldade, o mofo, as manchas e a sombra, que estão sempre presentes na casa e no corpo de Edna (como se um fosse extensão do outro), me dizem que há acontecimentos em seu passado ou pensamentos em seu coração que estão passando a consumi-la, conforme se aproxima o seu fim. A amargura da relação entre Edna e Kay, os pesadelos de Kay e o fantasma que está sempre à espreita são indícios, ao meu ver, de que uma série de incidentes foram enterrados, abafados e, agora, começam a emergir.

Os mesmos elementos (mofo, manchas e sombra) também me dizem que a doença de Edna a está consumindo e contaminando o relacionamento com filha e neta. Isso fica evidente nos episódios de agressividade para com Sam, nos lapsos de memória. Sam diz a Kay, quando esta menciona colocar a mãe em um asilo, que se Edna trocou suas fraldas quando Kay era pequena, era dever da filha fazer o mesmo pela mãe agora. Contudo, pouco depois, Sam vai sentir na própria pele que uma senhora de idade e uma criança não são a mesma coisa e não demandam os mesmos esforços, sejam físicos ou psicológicos.

Essas questões todas são trabalhadas na chave do horror. E, mesmo se visto apenas considerando esta primeira camada, Relic já é um tremendo filme do gênero. As cenas são de fato assustadoras, o labirinto do armário é de fato desesperador e claustrofóbico, as manchas no corpo e a auto mutilação são enervantes. A fotografia é majoritariamente escura; a ambientação da casa muito bem feita, dando a ideia de ela própria ser algo vivo que está apodrecendo a olhos vistos; a silhueta que está quase sempre em algum cantinho do enquadramento; os sons próprios de uma casa antiga, mas exagerados até o limite do "tem mais alguém nesse lugar?"; a trilha-sonora bastante orgânica com relação às cenas, ela, também, viva.

Então, chega-se ao final da história, e vamos de spoiler. Após uma sequência violenta e aterrorizante para as personagens (e para nós), após tantas feridas abertas, Kay pega sua mãe no colo e a leva para o quarto, onde termina de expor suas necroses, aceitando-as todas. Edna, nesse momento, já não é mais um monstro, já não tem mais o que esconder. Está entregue à delicadeza da filha, que cuida, ampara, perdoa. É quando Sam supera seus medos, compreende o que move sua mãe e retorna para elas. E elas se deitam na cama, quietinhas, as três gerações, amparando-se. É um final belíssimo e tenho que segurar o choro quando me lembro dele - mas não foi filmado ou montado de forma excessivamente dramática, nem pesada demais na trilha-sonora.

O trio de atrizes está muito bem em seus papéis. Eu não sou uma grande fã de Emily Mortimer, mas acho que seus olhos tristes conseguiram trazer o tom exato da melancolia que a personagem precisava. E Robyn Nevin consegue ser ameaçadora e forte, ao mesmo tempo em que doce e frágil. Gosto muito da cena em que ela dança na sala com a neta (novamente, me lembrou a minha avó).

O modo como a diretora Natalie Erika James equilibra tão bem o terror mais explícito com a sensibilidade do drama me remete aos filmes de terror japoneses e sul-coreanos, como Água Negra (2002) e Medo (2003). Spoiler: Um indicativo dessa influência é uma cena em que Edna está murmurando sozinha no hall escuro e caminhando lentamente em direção à porta de entrada da casa, quando Kay a chama. Nesse momento, Edna afasta os cabelos e levanta a cabeça, mostrando que estava andando para trás, de costas para a porta. A ideia do cabelo liso e longo cobrindo o rosto, seja proposital ou não, imediatamente me evoca o cinema japonês - bem como a água e os espelhos, muito presentes ao longo do longa. Pensando bem, a própria fotografia e efeitos sonoros parecem também corroborar essa minha impressão.

Relic é o longa-metragem de estreia de Natalie na direção e se mostra um trabalho bastante coeso, encorpado e objetivo. A partir de agora, estarei muito atenta para os projetos futuros dessa mulher que promete ser um grande nome dessa nova geração de cineastas dedicados ao terror.

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Atualização

27.11.20

Eu sinalizei mais especificamente no texto onde estão os spoilers, para que pessoas que não viram o filme ainda possam ler.

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