24.7.20

Chuva É Cantoria na Aldeia dos Mortos

Imagem azulada e escura de um rapaz indígena de cabelo preto liso à altura dos ombros, olhos levemente puxados, nariz largo, boca fina e bem desenhada, pele acobreada. Ele está de costas, mas torce o corpo para olhar para trás. Preenchendo o fundo da imagem há uma grande cachoeira.



2018
Documentário, Drama
Direção: Renée Nader Messora, João Salaviza
Roteiro: Renée Nader Messora, João Salaviza





Ihjãc entra em contato com seu falecido pai certa madrugada, à beira de um rio. O espírito do pai lhe pede para preparar a tradicional festa de fim de luto, para que ele possa seguir adiante. Ihjãc promete atender ao pai, mas tem medo que sua visão signifique que está se tornando um pajé.

Renée Nader Messora acompanha a aldeia krahô Pedra Branca, em Tocantins, desde 2009, quando começou a gravar vídeos de ritos e cantigas desse povo. Porém, Chuva É Cantoria na Aldeia dos Mortos fica entre fábula e documentário. É uma história sobre um indígena em uma aldeia, mas é também uma história universal sobre o luto, sobre a perda, sobre o medo. Retrata, desmistifica e nos aproxima de uma realidade que poucos não-indígenas conhecem.

Com ritmo lento que combina com o retrato dramático daquele momento (ficcional) da vida de Ihjãc e de sua esposa Krôtô, o filme começa e termina como uma poesia. Nessas duas sequências (inicial e final), a belíssima fotografia azulada é eficiente em nos passar o tom da história contada. 

Ihjãc está sempre melancólico e pensativo, mesmo quando em ação na roça de seu pai, carregando o peso da responsabilidade e de um futuro que ele não acredita estar preparado para enfrentar (enquanto novo pajé da aldeia); Krôtô é inteligente e decidida, segurando as pontas com a colheita e o filho pequeno, Tepto, enquanto seu marido passa por um momento depressivo. Ele tem medo e ela tenta compreender e apoiar.

Na aldeia, o foco se divide entre o rapaz e a esposa, mostrando o dia-a-dia daquele povo, seus costumes e crenças. Mas quando em determinado momento Ihjãc decide ir para a cidade em busca de ajuda para curar o mal que já passa a se manifestar fisicamente em seu corpo, a câmera o acompanha, e só a ele, por todo o tempo. E durante esse período, passamos a conhecer, por consequência, como se dá a relação entre o indígena e a cidade.

Ainda que o longa não retrate os conflitos que existem nessa relação entre indígena e homem branco, dando até certa impressão de ser um convívio prioritariamente pacífico e harmonioso, há pequenos indícios de que não é esse o caso. Talvez sejam indícios pequenos demais para contemplar a complexidade dessa relação, contudo, é importante termos em mente o tipo de história que quer ser contada e que, possivelmente, a representação mais fiel dessa relação criaria um ruído nessa história.

Nascido de uma parceria luso-brasileira, Chuva É Cantoria na Aldeia dos Mortos ganhou o prêmio especial do júri da mostra Um Certo Olhar, em Cannes, em 2018.


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* Coincidentemente, comecei a ler essa semana o livro “Escritos Indígenas: Uma Antologia”, que reúne diversos contos e textos de autores indígenas de todo o Brasil. Tem sido uma leitura muito rica, diversificada e agradável. Recomendo demais!

11.7.20

A Estranha Cor das Lágrimas do seu Corpo (L'étrange couleur des larmes de ton corps)

Em close de rosto num fundo preto, uma mulher branca joga a cabeça para trás, fazendo voar o cabelo liso e preto. O que parecem ser diversas gotas vermelhas brilham espalhadas pela imagem.

2013
Terror, Mistério, Giallo
Direção: Hélène Cattet, Bruno Forzani
Roteiro: Hélène Cattet, Bruno Forzani



Dan Kristensen (Klaus Tange) chega em casa após uma viagem e percebe que sua esposa está desaparecida desde sua partida. Assim, inicia-se uma investigação onde histórias paralelas se entrelaçam e não se sabe o que é sonho e o que é realidade.

A sinopse que escrevi é uma tentativa de racionalizar algo que não se pauta em momento algum na racionalidade. O filme é psicodélico, onírico, uma explosão de cores e imagens. A abstração é tão constante, rompendo o frágil fio narrativo a todo instante, que chega a ser em alguns momentos cansativo.

Hélène Cattet e Bruno Forzani fazem uma evidente homenagem ao giallo¹ italiano, mas, sem se prenderem demais ao gênero, trazem frescor e diversas outras inspirações cinematográficas. Uma das características que aproxima o longa do giallo, para além do apuro estético e do tema, é a trilha-sonora que muitas vezes até mesmo mimetiza as músicas dos filmes de 1970. Outras características perpassam pelo uso das cores e pela belíssima locação em estilo art nouveau. 

Eu já havia assistido ao longa em 2017 e, agora na revisão, eu gostei ainda mais. Apesar de minhas limitações, consigo reconhecer para além do giallo, muito do surrealismo e até mesmo algo do expressionismo alemão. O crítico de cinema Pablo Villaça disse certa vez que "Se Buñuel e David Lynch tivessem um filho que tomasse LSD e fizesse um giallo, o resultado seria A Estranha Cor das Lágrimas do seu Corpo" e tenho dificuldade de encontrar outra maneira de resumir tão bem o que é esse filme.

Imagem em preto e branco do rosto (apenas dos olhos para cima) de uma moça branca com os cabelos lisos, longos e pretos bem espalhados sobre o travesseiro onde sua cabeça está apoiada.

Contudo, está longe de ser apenas um amontoado de cenas que não querem dizer nada. Consigo ver nele comentários sobre o voyeurismo e a objetificação do corpo feminino, ao mesmo tempo em que trata da libertação feminina, de sua redescoberta enquanto alguém que tem seus próprios desejos e não se vê mais na posição de agradar ao homem mais do que a si mesma (inclusive colocando o homem como supérfluo). Trata a mulher como atora (a palavra não existe, mas atriz não cabe no sentido que quero expressar - “dona da ação”) e propulsora da história, enquanto o homem está perdido e se deixando levar. A mulher começa exterminando a sua imagem como é vista tradicionalmente (principalmente no giallo) e toma a narrativa para si, se reconstrói e anula o homem. A mulher, todas elas, é Laura (“vitoriosa”, “triunfadora”). 

E não se preocupe com possíveis spoilers no meu texto, pois, apesar de o giallo tradicionalmente ser calcado no mistério, pensar no mistério como motivação para assistir a esse filme é como acreditar que saber de antemão o final de 2001: Uma Odisseia no Espaço estragaria a experiência de assisti-lo - guardadas as devidas proporções. 

Ainda assim, muito pautado no grotesco e com algumas cenas que podem ser interpretadas como violência exagerada contra o corpo feminino, em diversos momentos eu diria não ser um filme palatável para muitas pessoas. Eu, no entanto, recomendo A Estranha Cor das Lágrimas do seu Corpo a todo e qualquer amante do terror que esteja aberto a uma experiência diferente e intensa.

O perfil do rosto de um homem branco está duplicado. Ele recebe em suas mãos uma xícara entregue por uma mão feminina enluvada em renda preta. O entorno está escuro e desfocado, com apenas um objeto não identificável de decoração (talvez uma moldura) iluminado em desfoque com um tom amarelo claro.

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* Recomendo sobre esse filme o texto As mudanças de gênero e o neo-giallo, por Andrey Lehnemann. 

¹ Falei um pouco mais sobre o giallo no texto de A Moça do Pijama Amarelo.

4.7.20

Diretores: Suzana Amaral

Foto em cores de Suzana Amaral, já senhora, usando um boné/boina e óculos de leitura presos atrás da orelha, mas pendurados sob o queixo. Suzana está manejando uma câmera filmadora.
Recentemente perdemos um dos grandes nomes do cinema brasileiro. Eu, que já estava preparando esse texto para um futuro próximo, decidi por adiantá-lo, em homenagem à diretora.

Mesmo tendo adentrado relativamente tarde na carreira, pois começou a faculdade já com 40 anos, ainda é de se pensar que uma profissional premiada do calibre de Suzana Amaral dirigiu apenas três longas de ficção, espalhados pelos seus mais de 35 anos de atividade. Além desses, a cineasta também dirigiu diversos documentários e programas para a televisão, em especial para a TV Cultura.

Seus três filmes são adaptações literárias, sobre os quais aqui escrevo:


Madame Carlota e Macabéa sentadas olham para extracampo, possivelmente algo amparado em uma mesa à frente delas, de onde vem uma iluminação amarelada banhando os dois rostos. Carlota gesticula e parece estar falando algo, enquanto Macabéa sorri.A Hora da Estrela


1986
Drama
Direção: Suzana Amaral
Roteiro: Suzana Amaral e Alfredo Oroz





Macabéa (em uma interpretação perfeita e singular de Marcélia Cartaxo) é uma mulher simplória, ingênua, sem estudo, sem família, sem perspectiva. Deslocada do mundo, quer fazer parte dele. Não o entende, mas quer conhecê-lo. É muito curiosa - e ambiciosa à sua maneira.

Conhece Olímpico de Jesus (José Dumont), um homem tão simples quanto e muito ambicioso. Porém, nele não há curiosidade, não há busca por conhecimento. Macabéa, não intencionalmente e graça à sua natureza questionadora, a todo momento o lembra de suas falhas, o que o faz desprezá-la. Ao mesmo tempo, ele a mantém ao seu lado porque consegue subjugá-la e humilhá-la, de modo a poder se sentir superior.

Estes são a protagonista e seu interesse romântico. Mas quero falar também sobre outras duas mulheres que cruzam a vida de Macabéa, pois acho interessante o modo como Suzana Amaral trata essas personagens femininas:

Glória (Tamara Taxman) é a mulher moderna dos anos 1980. Sexualmente ativa, trabalha fora, independente - e vítima de cada uma dessas características. Ainda se mantém presa ao sonho de se casar, mas a sociedade ainda muito conservadora se coloca como um obstáculo. Infelizmente, como parte dessa sociedade, ela não se nega a passar por cima de outras mulheres para atingir seu objetivo. E, assim como Olímpico, não se abstém de humilhar Macabéa de tratá-la sempre com condescendência.

Madame Carlota (Fernanda Montenegro) foi prostituta, foi cafetina, agora é cartomante. Mais do que Glória, está disposta a se aproveitar das mesmas fragilidades que a colocaram em sua posição, utilizando-as para enganar outras mulheres e como meio de sobrevivência. Ao mesmo tempo, é a única pessoa a tratar Macabéa com cuidado, delicadeza e a encorajá-la.

Três mulheres diversas. Três vítimas da sociedade, duas delas se tornando também algozes. Suzana Amaral trabalha com maestria ao conseguir transpor as nuances de cada uma delas, por menor que seja seu tempo em tela. As relações delas com os homens (sejam amorosas, sejam profissionais) retratam bem sua época e resvalam em situações que ainda hoje perduram.

Suzana Amaral está segura da história que quer contar, adaptada do romance homônimo de Clarice Lispector, e se mostra segura de como contá-la. Sua direção é primorosa - realista, mas com inserções precisas de imagens às vezes metafóricas, às vezes oníricas. Com uma trilha sonora que deixa o filme extremamente datado, mas a qual conversa tão bem com o resto do filme, que só ajuda a fortalecê-lo.

Não à toa, A Hora da Estrela foi o primeiro filme dirigido por uma mulher, e durante muitos anos o único, a ser selecionado para tentar concorrer ao Oscar de melhor filme estrangeiro. Com ele, Suzana Amaral foi indicada ao Urso de Ouro no Festival de Berlim de 1986 e ganhou o prêmio da crítica, enquanto Marcélia Cartaxo ganhou o Urso de Prata. No Festival de Brasília de 1985, ganhou todos os principais prêmios (6 no total).


Uma Vida em SegredoBiela está agachada na beira de um rio, com a saia arregaçada até as coxas, se preparando para levar as mãos à água.



2001
Drama
Direção: Suzana Amaral
Roteiro: Suzana Amaral




Baseado no livro de Autran Dourado, Uma Vida em Segredo conta a história da jovem Biela (Sabrina Greve), que, após ficar órfã, precisa se mudar da roça, onde cresceu, para a cidade, onde passará a morar com um casal de primos e seus filhos. Deslocada, apesar da boa vontade dos parentes - pois nem estes sabem como acolhê-la e fazê-la sentir-se bem, nem ela é capaz de se adaptar à nova vida.

O filme dialoga muito bem com sua obra pregressa, ao retratar novamente uma moça que luta, muitas vezes contra si mesma, buscando encontrar o seu lugar no mundo. Contudo, apesar das semelhanças, Biela difere de Macabéa por não ter ambições fantasiosas. Ao contrário, não almeja nada que a afaste da simplicidade com a qual cresceu, mantendo o seu coração calcado no passado e batendo como o monjolo da sua infância.  

Assim, basta uma grande decepção para rachar o relacionamento familiar que nasceu estremecido. Por isso, não é de se estranhar que a pobre Biela se apegue tanto ao vira-lata Vismundo, tão perdido e abandonado quanto ela, quando este parece ser o primeiro ser vivo que reconhece o seu valor e não se preocupa com o que ela veste ou como come.

Suzana Amaral, em seu segundo longa de ficção, faz um trabalho belíssimo e delicado sobre a simplicidade e sobre a solidão de não conseguir se encaixar no que a sociedade espera e cobra. Mas é um filme quase todo contemplativo e introspectivo, o que infelizmente pode afastar algumas pessoas.  


um rapaz branco de barba e cabelo preto (Júlio Andrade) caminha por uma rua larga, tipo calçadão, de piso de pedra paralelepípedo. À sua volta, uma construção em estilo colonial com pintura em tom mostarda, com  portas lado a lado formando uma série de lojas.
Hotel Atlântico¹



2009
Drama
Direção: Suzana Amaral
Roteiro: Suzana Amaral





Seu terceiro longa ficcional é baseado no livro de João Gilberto Noll, o qual não li, mas imagino ser obra de realismo fantástico, se for como o que vi no filme. Hotel Atlântico é um road movie que acompanha as viagens do Artista (Júlio Andrade) e nos surpreende com os encontros e acontecimentos com os quais ele se depara pelo caminho. Nele, a única constante é a morte, que está sempre rondando suas aventuras. 

Dizendo dessa forma, pode parecer que se trata de um filme de ação ou aventura, porém, tal qual nos dois anteriores, aqui Suzana Amaral aposta na contemplação e na constante reflexão, onde até os diálogos são poucos e espaçados. Por essas características, bem como pela quantidade de cenas em locações externas e que trazem uma noção de tempo real, esse filme me fez lembrar muito de Agnès Varda, principalmente em Cléo das 5 às 7 e em Os Renegados.

Além de Varda, achei interessante que algumas cenas e enquadramentos do início do longa também me remeteram ao estilo de Ida Lupino, diretora sobre quem pretendo escrever aqui em breve.


Finalizo com um desejo. Espero que de alguma forma meu texto inspire mais pessoas a conhecerem o cinema de Suzana Amaral, diretora tão importante no cinema brasileiro, mas de quem ainda pouco se fala, infelizmente. Suzana Amaral merece muito mais reconhecimento, nem que seja agora postumamente.


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¹ Recomendo, sobre Hotel Atlântico, a crítica Hotel Atlântico, de Suzana Amaral (Brasil, 2009), por Eduardo Valente.

* Sobre a diretora, mais uma vez, recomendo aqui o podcast Feito por Elas: #03 Suzana Amaral, que inclusive menciona também o paralelo com Agnès Varda.