12.5.20

Diretores: Agnès Varda

Varda já senhora está de perfil (fazendo careta com uma mãos no nariz) em frente a uma fotografia sua preto e branco de tamanho real. Na fotografia, Varda está jovem e também de perfil. Ambas usam o mesmo casaco. Assim, faz-se parecer que as duas versões de Agnès estão frente a frente se olhando (e a velha tripudiando da nova).2019 prenunciava que não seria um bom ano quando, já em março, nos trouxe uma lamentável notícia. O mundo perdeu Agnès Varda. Não é uma perda minha, ou sua, é de toda e qualquer pessoa que diz amar o cinema. Cineasta e fotógrafa, faleceu aos 90 anos ainda em plena atividade. Seu primeiro longa-metragem, La Pointe-Courte, de 1955, assentou a pedra fundamental da nouvelle vague e seu último, Visages Villages, de 2017, foi indicado ao Oscar de melhor documentário e concorreu e venceu outras 36 premiações. Ainda, no início de 2019, Varda lançou um documentário em minissérie de dois episódios chamado Varda por Agnès.

O primeiro filme que assisti dela foi justamente seu último, Visages Villages, um documentário dirigido e roteirizado em co-autoria com o fotógrafo/muralista JR. Apesar de documentários raramente me chamarem a atenção, havia decidido dar uma chance a este - afinal, não é todo dia que uma senhora de 89 anos, parte fundamental da história do cinema (que eu desconhecia até então!), é tão comentada como Agnès Varda o foi nos anos de 2017 e 2018. E meu amor por ela nasceu instantaneamente! Impossível não se sensibilizar com seu olhar, com sua sabedoria e simplicidade. Agnès é apaixonante, seja atrás ou em frente às câmeras.

Dali em diante, assisti a vários outros praticamente em sequência. No total, foram 7 (dos 24) filmes da cineasta, tentando abarcar os momentos mais marcantes e a diversidade temática de sua carreira. Além do já mencionado acima, são eles: Cléo das 5 às 7 (1962), As Duas Faces da Felicidade (1965), Uma Canta, a Outra Não (1977), Os Renegados (1985), Os Catadores e Eu (2000) e As Praias de Agnès (2008). Destes, selecionei 4 sobre os quais falar um pouquinho mais:


Cléo de 5 à 7 (Cléo das 5 às 7)

1962
Drama, Comédia
Direção: Agès Varda
Roteiro: Agnès Varda




O segundo longa da carreira da cineasta é um dos mais importantes exemplos da nouvelle vague, indicado à Palma de Ouro em Cannes, e traz duas grandes inovações para o cinema: a história é contada em tempo real e pela perspectiva feminina. O realismo é quase documental, com longas sequências permeando uma Paris viva e autêntica.

Cléo das 5 às 7 acompanha 1h30 da vida da cantora Cléo (Corinne Marchand), enquanto esta aguarda o resultado de um teste que lhe dirá se tem ou não câncer. Durante esse período, seguimos Cléo em seus compromissos e em seu passeio pela cidade que se torna uma válvula de escape para seus medos e aflições. Trata-se de um filme intimista e reflexivo, ao mesmo tempo que se abre para o urbano cheio de casualidades e encara as opressões da sociedade.

Sendo Agnès Varda uma fotógrafa de formação, não me admira que seus filmes tenham uma fotografia impecável. Neste, a presença de espelhos é marcante e se relaciona diretamente com o que quer ser contado. Mais do que palavras e diálogos, a imagem tem grande peso na narrativa.

Um dos meus momentos favoritos do filme, no entanto, é quando Cléo ensaia em seu apartamento uma lindíssima canção com seus colegas instrumentistas.


Le Bonheur (As Duas Faces da Felicidade)

1965
Drama, Romance
Direção: Agès Varda
Roteiro: Agnès Varda



O terceiro longa de Varda toca em um tema polêmico e delicado, discutindo a traição e a monogamia. As Duas Faces da Felicidade conta a história de uma família aparentemente feliz e completa, mas que tem sua estrutura abalada quando o protagonista se apaixona por uma terceira pessoa. Apesar do tabu e da complexidade dos temas abordados, Agnès cria um filme direto, novamente carregado de um realismo que beira o documental e sem juízos de valor.

Essa crueza, mas que de maneira nenhuma se reflete em qualquer tipo de frieza, se tornará como uma marca sempre presente em sua filmografia. Varda tem imensa habilidade em desnudar as nuances dos mais controversos assuntos, escancarando a humanidade e as contradições dos personagens, tornando-os ricos em suas falhas tanto quanto em suas qualidades.

Novamente, a fotografia se destaca, trazendo uma palheta de cores vivas pela qual é impossível se passar com indiferença - exuberância essa que contrasta fortemente com a história desconfortável que conta.


Sans Toit ni Loi (Os Renegados)

1985
Drama, Romance
Direção: Agès Varda
Roteiro: Agnès Varda



Dou agora um salto de 20 anos. Escolhi Os Renegados, vencedor do Leão de Ouro do Festival de Veneza, pois é um filme que sintetiza muito do que a cineasta iria trabalhar durante toda a sua vida. Nesse filme, Varda volta o seu olhar para os marginalizados, algo que ela iria repetir em outros longas, e é o grande exemplo de filme em que ela vai esticar até quase romper a linha que separa a ficção do documentário.

O longa conta, em retrospectiva, os últimos dias da vida da andarilha Mona (Sandrine Bonnaire), após seu corpo congelado ter sido encontrado em uma vala. Aqui, mais uma vez, a imparcialidade da câmera e do roteiro fica mais do que evidente, mostrando uma trajetória triste e palpável, "sem teto nem lei", de uma juventude que não encontra seu lugar no mundo.


Les Plages d'Agnès (As Praias de Agnès)

2008
Documentário
Direção: Agès Varda
Roteiro: Agnès Varda e Didier Rouget




Após cerca de 15 anos filmando majoritariamente documentários, As Praias de Agnès é um exemplo dentre aqueles que podemos considerar autobiográficos ou um mergulho para dentro da cineasta.

Já com quase 80 anos, Varda traz um filme absolutamente adorável, em que passeia por diversas paisagens onde situa momentos específicos de sua vida e pincela sobre sua infância, sua carreira, seu casamento, suas amizades, seus gatos.

O documentário é narrado por uma voz feminina (da própria Agnès) e não se prende a um roteiro rígido. Tal qual acontece em uma conversa descontraída e íntima, as histórias vão se interligando e mudando de rumo conforme as situações vão se apresentando nos locais visitados. Um deleite bem humorado, delicado e suave, tal qual a saudosa velhinha.

...

Aproveito para divulgar essa mulher linda que ama a Varda ainda mais do que eu:

Sobre Agnès Varda #1 e #2 (dois ensaios da Michelle B. no Cine Varda).