4.7.20

Diretores: Suzana Amaral

Foto em cores de Suzana Amaral, já senhora, usando um boné/boina e óculos de leitura presos atrás da orelha, mas pendurados sob o queixo. Suzana está manejando uma câmera filmadora.
Recentemente perdemos um dos grandes nomes do cinema brasileiro. Eu, que já estava preparando esse texto para um futuro próximo, decidi por adiantá-lo, em homenagem à diretora.

Mesmo tendo adentrado relativamente tarde na carreira, pois começou a faculdade já com 40 anos, ainda é de se pensar que uma profissional premiada do calibre de Suzana Amaral dirigiu apenas três longas de ficção, espalhados pelos seus mais de 35 anos de atividade. Além desses, a cineasta também dirigiu diversos documentários e programas para a televisão, em especial para a TV Cultura.

Seus três filmes são adaptações literárias, sobre os quais aqui escrevo:


Madame Carlota e Macabéa sentadas olham para extracampo, possivelmente algo amparado em uma mesa à frente delas, de onde vem uma iluminação amarelada banhando os dois rostos. Carlota gesticula e parece estar falando algo, enquanto Macabéa sorri.A Hora da Estrela


1986
Drama
Direção: Suzana Amaral
Roteiro: Suzana Amaral e Alfredo Oroz





Macabéa (em uma interpretação perfeita e singular de Marcélia Cartaxo) é uma mulher simplória, ingênua, sem estudo, sem família, sem perspectiva. Deslocada do mundo, quer fazer parte dele. Não o entende, mas quer conhecê-lo. É muito curiosa - e ambiciosa à sua maneira.

Conhece Olímpico de Jesus (José Dumont), um homem tão simples quanto e muito ambicioso. Porém, nele não há curiosidade, não há busca por conhecimento. Macabéa, não intencionalmente e graça à sua natureza questionadora, a todo momento o lembra de suas falhas, o que o faz desprezá-la. Ao mesmo tempo, ele a mantém ao seu lado porque consegue subjugá-la e humilhá-la, de modo a poder se sentir superior.

Estes são a protagonista e seu interesse romântico. Mas quero falar também sobre outras duas mulheres que cruzam a vida de Macabéa, pois acho interessante o modo como Suzana Amaral trata essas personagens femininas:

Glória (Tamara Taxman) é a mulher moderna dos anos 1980. Sexualmente ativa, trabalha fora, independente - e vítima de cada uma dessas características. Ainda se mantém presa ao sonho de se casar, mas a sociedade ainda muito conservadora se coloca como um obstáculo. Infelizmente, como parte dessa sociedade, ela não se nega a passar por cima de outras mulheres para atingir seu objetivo. E, assim como Olímpico, não se abstém de humilhar Macabéa de tratá-la sempre com condescendência.

Madame Carlota (Fernanda Montenegro) foi prostituta, foi cafetina, agora é cartomante. Mais do que Glória, está disposta a se aproveitar das mesmas fragilidades que a colocaram em sua posição, utilizando-as para enganar outras mulheres e como meio de sobrevivência. Ao mesmo tempo, é a única pessoa a tratar Macabéa com cuidado, delicadeza e a encorajá-la.

Três mulheres diversas. Três vítimas da sociedade, duas delas se tornando também algozes. Suzana Amaral trabalha com maestria ao conseguir transpor as nuances de cada uma delas, por menor que seja seu tempo em tela. As relações delas com os homens (sejam amorosas, sejam profissionais) retratam bem sua época e resvalam em situações que ainda hoje perduram.

Suzana Amaral está segura da história que quer contar, adaptada do romance homônimo de Clarice Lispector, e se mostra segura de como contá-la. Sua direção é primorosa - realista, mas com inserções precisas de imagens às vezes metafóricas, às vezes oníricas. Com uma trilha sonora que deixa o filme extremamente datado, mas a qual conversa tão bem com o resto do filme, que só ajuda a fortalecê-lo.

Não à toa, A Hora da Estrela foi o primeiro filme dirigido por uma mulher, e durante muitos anos o único, a ser selecionado para tentar concorrer ao Oscar de melhor filme estrangeiro. Com ele, Suzana Amaral foi indicada ao Urso de Ouro no Festival de Berlim de 1986 e ganhou o prêmio da crítica, enquanto Marcélia Cartaxo ganhou o Urso de Prata. No Festival de Brasília de 1985, ganhou todos os principais prêmios (6 no total).


Uma Vida em SegredoBiela está agachada na beira de um rio, com a saia arregaçada até as coxas, se preparando para levar as mãos à água.



2001
Drama
Direção: Suzana Amaral
Roteiro: Suzana Amaral




Baseado no livro de Autran Dourado, Uma Vida em Segredo conta a história da jovem Biela (Sabrina Greve), que, após ficar órfã, precisa se mudar da roça, onde cresceu, para a cidade, onde passará a morar com um casal de primos e seus filhos. Deslocada, apesar da boa vontade dos parentes - pois nem estes sabem como acolhê-la e fazê-la sentir-se bem, nem ela é capaz de se adaptar à nova vida.

O filme dialoga muito bem com sua obra pregressa, ao retratar novamente uma moça que luta, muitas vezes contra si mesma, buscando encontrar o seu lugar no mundo. Contudo, apesar das semelhanças, Biela difere de Macabéa por não ter ambições fantasiosas. Ao contrário, não almeja nada que a afaste da simplicidade com a qual cresceu, mantendo o seu coração calcado no passado e batendo como o monjolo da sua infância.  

Assim, basta uma grande decepção para rachar o relacionamento familiar que nasceu estremecido. Por isso, não é de se estranhar que a pobre Biela se apegue tanto ao vira-lata Vismundo, tão perdido e abandonado quanto ela, quando este parece ser o primeiro ser vivo que reconhece o seu valor e não se preocupa com o que ela veste ou como come.

Suzana Amaral, em seu segundo longa de ficção, faz um trabalho belíssimo e delicado sobre a simplicidade e sobre a solidão de não conseguir se encaixar no que a sociedade espera e cobra. Mas é um filme quase todo contemplativo e introspectivo, o que infelizmente pode afastar algumas pessoas.  


um rapaz branco de barba e cabelo preto (Júlio Andrade) caminha por uma rua larga, tipo calçadão, de piso de pedra paralelepípedo. À sua volta, uma construção em estilo colonial com pintura em tom mostarda, com  portas lado a lado formando uma série de lojas.
Hotel Atlântico¹



2009
Drama
Direção: Suzana Amaral
Roteiro: Suzana Amaral





Seu terceiro longa ficcional é baseado no livro de João Gilberto Noll, o qual não li, mas imagino ser obra de realismo fantástico, se for como o que vi no filme. Hotel Atlântico é um road movie que acompanha as viagens do Artista (Júlio Andrade) e nos surpreende com os encontros e acontecimentos com os quais ele se depara pelo caminho. Nele, a única constante é a morte, que está sempre rondando suas aventuras. 

Dizendo dessa forma, pode parecer que se trata de um filme de ação ou aventura, porém, tal qual nos dois anteriores, aqui Suzana Amaral aposta na contemplação e na constante reflexão, onde até os diálogos são poucos e espaçados. Por essas características, bem como pela quantidade de cenas em locações externas e que trazem uma noção de tempo real, esse filme me fez lembrar muito de Agnès Varda, principalmente em Cléo das 5 às 7 e em Os Renegados.

Além de Varda, achei interessante que algumas cenas e enquadramentos do início do longa também me remeteram ao estilo de Ida Lupino, diretora sobre quem pretendo escrever aqui em breve.


Finalizo com um desejo. Espero que de alguma forma meu texto inspire mais pessoas a conhecerem o cinema de Suzana Amaral, diretora tão importante no cinema brasileiro, mas de quem ainda pouco se fala, infelizmente. Suzana Amaral merece muito mais reconhecimento, nem que seja agora postumamente.


...

¹ Recomendo, sobre Hotel Atlântico, a crítica Hotel Atlântico, de Suzana Amaral (Brasil, 2009), por Eduardo Valente.

* Sobre a diretora, mais uma vez, recomendo aqui o podcast Feito por Elas: #03 Suzana Amaral, que inclusive menciona também o paralelo com Agnès Varda.

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