25.11.20

O Que Ficou Para Trás (His House)

Um homem (Sope Dirisu) e uma mulher (Wunmi Mosaku), ambos negros, sentados no chão sobre um tapete vermelho, frente à frente, em um ambiente cujas paredes estão descascadas e remendadas. Ele tem cabelo preto muito curto e ela usa seu cabelo preto em um penteado que o deixa preso em ondas rente à cabeça. Entre eles, uma toalha clara de mesa estendida ao chão e um jantar e velas espalhados sobre ela. Os dois estendem o braço ao centro da toalha para se servirem de comida. Por causa da iluminação e do cenário, a cena tem uma tonalidade predominantemente alaranjada.

 

2020
Terror, Drama, Suspense
Direção: Remi Weekes
Roteiro: Remi Weekes, Felicity Evans e Toby Venables
 




Bol Majur (Sope Dirisu) e Rial Majur (Wunmi Mosaku) acabam de chegar à Inglaterra após fugir de uma guerra no Sudão do Sul e perder a pequena Nyagak (Malaika Wakoli-Abigaba) durante a travessia. O casal irá enfrentar, além das dificuldades para se adaptar no novo país e relativas ao luto, a perseguição de uma entidade que os acompanhou: O Bruxo (Javier Botet).

Assisti a O Que Ficou Para Trás já ansiosa e cheia de expectativas, após ter ouvido uma série de elogios espalhados sobre ele. Trata-se do longa de estreia de Remi Weekes, de modo que impressiona a habilidade do diretor em construir momentos de absoluta tensão recheados de ápices assustadores. 

O filme mantém-se na tendência da última década, de retomada do terror psicológico que pontuou o final dos anos 1960 e início dos anos 1970, de calcar-se em situações reais entremeadas por algo sobrenatural - de modo que o sobrenatural costuma vir com uma carga metafórica que reforça e/ou amplia o sentido do horror já criado pela situação real posta. Vemos isso claramente em O Bebê de Rosemary (1968) e Inverno de Sangue em Veneza (1973), bem como em O Babadook (2014), Corra (2017) e Relic (2020), por exemplo.

No entanto, Remi dá um passo adiante, simultaneamente recuperando o susto como instrumento dentro do terror, o qual estava bastante desgastado após sua utilização ter sido esvaziada de sentido ao longo da história do gênero. Não é exagero quando digo que já há muito tempo não me deparo com um lançamento cinematográfico que tenha me atormentado com uma quantidade tão grande de sustos. E o grande pulo do gato é, digamos, a ausência de um pulo do gato. Trocadilhos à parte, o trunfo de Weekes é conseguir ancorar todos os sustos com absoluto sentido dentro de cada cena. Não há sequer um susto vazio, nenhum uso do clichê "era apenas um gato". 

Assim, o filme traz um casal atormentado por uma entidade sobrenatural, pelo luto e pela culpa, de modo que esses três elementos se fundem para criar uma atmosfera de deslocamento e desespero, permeada por momentos indiscutivelmente aterradores. Para além disso, os dois se encontram agora inseridos em uma nova cultura, enfrentando preconceito, humilhações e tendo que lidar com sentimentos conflitantes de gratidão e raiva. Rial e Bol estão sozinhos em um lugar hostil, que os recebe a contragosto e exige uma subserviência à qual é muito difícil de se submeter. Estão sozinhos e têm apenas o apoio mútuo ao qual recorrer. No entanto, quanto mais problemas surgem, mais eles se distanciam um do outro, ampliando cada vez mais a sensação de desolamento e desesperança. 

A ambientação é muito bem construída, de modo a reforçar as sensações desejadas. Quando Bol resolve explorar a cidade pela primeira vez, seu estado de espírito se traduz tanto nas locações quanto nas relações com os figurantes. Já Rial encontra uma cidade completamente diversa: labiríntica, ameaçadora. A própria casa onde moram vai se modificando com as ações dos protagonistas, ajudando a estabelecer um cenário que espelha a saúde mental dos mesmos. Por fim, ainda no quesito ambientação, a edição de som e trilha-sonora, em específico nas sequências mais calcadas no terror explícito, fazem um trabalho excelente no sentido de aumentar exponencialmente a nossa inquietação e medo puro. 

Além disso, mesmo se passando na Inglaterra, o longa nos coloca em contato com uma cultura menos eurocentrada, por meio do figurino, linguagem e das cenas que se passam no Sudão do Sul (sejam reais, lembradas ou imaginadas). E até mesmo a figura do bruxo, com sua história e caracterização, nos coloca em contato com novas crenças.

O filme conta com atuações primorosas da dupla de protagonistas e com a certeira participação de Matt Smith. Sope Dirisu entrega uma atuação inicialmente carismática - carisma esse que passa a ser de extrema importância conforme a trama se desenrola - e obsessiva, enquanto Wunmi Mosaku (que faz parte do elenco da muito comentada série Lovecraft Country, lançada neste ano) traz sensibilidade entremeada com dureza, também imprescindíveis para compor sua personagem.

E é por tudo isso que Remi Weekes entra para a minha lista de grandes promessas do cinema contemporâneo. Vamos ficar atentos! Afinal, diante de tantas qualidades, não há dúvidas de que recomento O Que Ficou Para Trás com louvor!


17.11.20

A Hora do Pesadelo 6: Pesadelo Final, a Morte de Freddy (Freddy's Dead: The Final Nightmare)

Um homem (Freddy Krueger) de rosto queimado, camiseta de manga longa com listras horizontais verdes e vermelhas e chapéu fedora marrom com faixa preta. Está sentado com um dos pés sobre uma mesa de madeira. Com uma mão que usa luva com lâminas nos dedos, segura um controle de videogame, diz algo sorrindo e aperta um dos botões. Em primeiro plano, desfocada e à direita do enquadramento, as costas de uma televisão de tubo sobre a mesa. O ambiente é pequeno, sujo e cheio de peças metálicas enferrujadas sobre a mesa e à sua volta.

 

1991
Terror
Direção: Rachel Talalay
Roteiro: Rachel Talalay e Michael De Luca
 





Um adolescente (Shon Greenblatt) com amnésia é levado para um reformatório, cujos funcionários Maggie (Lisa Zane) e Doc (Yaphet Kotto) tentam desvendar sua origem ao tentar decifrar seus pesadelos.

Talvez você esteja se perguntando por que alguém iria escrever um texto especificamente sobre aquele que deve ser considerado o pior filme da franquia A Hora do Pesadelo. Talvez você esteja imaginando que o motivo seja justamente esculachá-lo. Porém, apesar de esse raciocínio fazer sentido, eu pretendo aqui explicar justamente o que me faz gostar tanto dele, mesmo enxergando com tranquilidade seus defeitos.

Então, para resolver logo a questão mais óbvia, vou começar pelo que todo mundo já sabe: o roteiro desse filme é um lixo. 

Ao longo de toda a franquia, foi-se construindo com maior ou menor coerência, uma série de elementos e pedaços de história que vão compondo o passado de Freddy Krueger (Robert Englund, sempre maravilhoso) e todo um imaginário relacionado a ele. Nos é dado no primeiro filme que Freddy morava na Rua Elm e era um assassino de crianças, todas moradoras daquela mesma rua, e que, após uma falha judiciária, acabou sendo solto e, em seguida, queimado vivo pelos pais das crianças. Também somos informados que ele levava suas vítimas para a "sala das caldeiras" de uma fábrica onde trabalhou, naquele momento já desativada, e que foi esse o local onde ele foi linchado. Por fim, conhecemos logo de cara a personalidade sarcástica e "irreverente" de Freddy, o qual volta em pesadelos para se vingar nos filhos daqueles que o mataram, assassinando-os com sua crueldade extravagante e bem-humorada. Ao longo das sequências, a casa de Nancy (Heather Langenkamp), protagonista do primeiro filme, localizada na Rua Elm nº 1428 de Springwood, se torna um local de importância, ao qual Freddy acaba se apegando.

Contudo, o sexto filme da franquia decide selecionar alguns desses elementos já estabelecidos, descartar outros, adicionar novas informações, realocar elementos em outras situações, criando uma história que não funciona nem como continuidade do que existia, nem como algo novo. Uma das duas mudanças mais drásticas está relacionada ao fato de Springwood, de repente, passar a ser retratada como uma cidadezinha minúscula e rural. A alteração é tão grande que em absolutamente nada lembra as locações das sequências anteriores. A outra mudança, ainda mais inesperada, sem a menor explicação e totalmente tirada do chapéu: a partir de agora nos é informado que casa nº 1428 havia sido a moradia de Freddy quando vivo. 

Para além da profusão de modificações, as incoerências e fragilidades do roteiro vão se empilhando ao longo do filme. Por exemplo, temos que, quando Maggie decide levar o rapaz desmemoriado para Springwood, ao encontrar três adolescentes fugitivos dentro da van que estavam usando, a moça entrega a chave do veículo a eles com a orientação de voltarem sozinhos para o reformatório. Ora! Eles estavam fugindo do reformatório e ela entrega a chave da van na mão deles?! Essa é a pessoa mais ingênua e crédula do mundo - o que a torna inadequada para o serviço presta. Além disso, a van era o meio de transporte dela e do menino. Como ela esperava voltar para o reformatório? 

Outra coisa que marca a franquia é protagonismo feminino, com exceção do segundo filme, mas que mesmo neste apresenta uma personagem feminina de destaque e que acaba tendo muito mais agência que o próprio protagonista. Infelizmente, o sexto filme é o que possui a protagonista mais decepcionante dentre todas. Inclusive, neste sexto filme, todos os personagens são subaproveitados, visto que o foco em desvendar o passado do Freddy é tão intenso que não se desenvolve mais nada para além disso. Os personagens são superficiais e suas relações e conflitos não são bem desenvolvidos. Em contrapartida, isso foi muito bem trabalhado no primeiro filme, sendo um dos motivos para ter se tornado tão marcante, e foi algo que tentou-se manter nas primeiras sequências, mas totalmente abandonado aqui em preterimento do Freddy.

Certo, então qual o motivo de eu gostar de um filme com tantos problemas?

Primeiramente, a memória afetiva. Este foi um dos primeiros filmes da franquia que assisti, ainda pré-adolescente. E sempre que o nome Freddy Krueger é mencionado, automaticamente me vem à memória a cena em que ele mata um dos adolescentes jogando videogame. Para mim, essa é uma das melhores cenas da franquia, é a chacota assumida e entregue. Salve Robert Englund! Esse filme, mais do que aterrorizar, te fará sorrir da audácia. Assim como na cena, logo no início, em que Freddy aparece vestido de bruxa e voando em uma vassoura. Menos descaradamente debochada, outro momento realmente muito bom é toda a sequencia do pesadelo do garoto que possui deficiência auditiva. 

É claro que a memória afetiva é uma argumentação subjetiva. Mas, posso estar afirmando o óbvio mais uma vez aqui, a arte é subjetiva. Por mais análises técnicas que se possa fazer, ainda assim, a subjetividade de quem está consumindo a arte vai pesar muito. E, sim, A Hora do Pesadelo 6 também é arte. De qualquer forma, as cenas mencionadas possuem um bom humor latente e são bem filmadas, de modo que é normal que conquistem com facilidade o coração de uma criança. Talvez se eu tivesse assistido pela primeira vez o filme já adulta, não aconteceria de ter me marcado tanto - ou talvez aconteceria, visto que até hoje gosto de filmes assumidamente galhofas.

Aliás, este é o primeiro longa dirigido por Rachel Talalay, sendo que em seguida ela dirigiu outros dois filmes, O Fantasma da Máquina em 1993, estrelado por Karen Allen (minha eterna Marion Ravenwood, de Os Caçadores da Arca Perdida) e Tank Girl, Detonando o Futuro em 1995. Depois, ela passou os anos seguintes totalmente dedicada à direção de muitas séries e alguns filmes para a televisão. Finalmente, agora em 2020, ela lançou seu quarto longa para o cinema, chamado Manual de Caça a Monstros, com foco no público infanto-juvenil. O caso é que parece que o tema mais infantilizado parece atraí-la, o que pode explicar esse ar mais exageradamente gozador que encontramos em A Hora do Pesadelo 6.

Além de considerar a direção de Rachel bastante satisfatória, a ambientação, a trilha-sonora e até mesmo a produção são muito bem feitos se formos comparar com outros filmes da franquia, como por exemplo o quarto (no qual em um pesadelo que se passa num cenário de HQ, onde tudo é branco, preto e cinza, o pulso "colorido" do Freddy fica à mostra quando ele estica o braço e a manga da camiseta se retrai). A cidade, apesar de ter se transformado em outro lugar, e a casa do Freddy (que já também deixa de ter a decoração de quando era apenas casa da Nancy), demonstram uma preocupação mais apurada com a direção de arte, criando ambientes muito interessantes. Inclusive, gosto muito quando um personagem compara essa "nova" Springwood a Twin Peaks (locação e título da minha série preferida de todos os tempos, que possui toda uma atmosfera e personagens que provocam muita estranheza).

Vale notar que, pela segunda vez, a franquia apresenta personagens negros com certo destaque e que não morrem no final. O terceiro filme havia trazido dois personagens: Kincaid (Ken Sagoes), que infelizmente morre nos primeiros minutos do filme seguinte, e Max (Laurence Fishborne!), que inclusive foge do estereótipo do alívio cômico. Agora, no sexto, temos Doc que, apesar de não ter tanto tempo de tela, também não surge como alívio cômico e sobrevive ao final da história. Para uma franquia de filmes que foram quase todos lançados nos anos 1980, chega a ser impressionante.

Agora, voltando um pouco à questão da memória afetiva, vou avançar para o trecho final de A Hora do Pesadelo 6. Quando esse filme chegou aos cinemas da minha cidade, não se falava em outra coisa. Ele era alardeado como o "Freddy Krueger 3D" e todos os meus colegas da escola foram à estreia - exceto euzinha, pois ainda não tinha sequer completado 10 anos de idade. Só pude assisti-lo quando saiu nas locadoras, provavelmente cerca de um ano depois. 

E, bem, a parte 3D se concentra nos 15 minutos finais: usando de um recurso quase pedagógico, em seu pesadelo Maggie coloca um par de óculos 3D (daqueles antigos, em que as lentes são de celofane e uma é azul e a outra vermelha) para poder acessar a mente de Freddy (?!). Adoro que o modo como ela testa para ver se os óculos estão "funcionando" é aproximar e afastar a mão do rosto (?!). Nas cenas seguintes, seres mitológicos parecendo pequenas cobras (ou minhocas gordinhas e cabeçudas) voam pela tela, Freddy aproxima sua luva-garra da câmera e toda uma sorte de truques típicos são criados para divertir o público ansioso pelo, então, novo recurso cinematográfico. Tudo é ridiculamente maravilhoso e torço para que um dia algum cinema decida exibir novamente essa pérola para que eu possa apreciar essa obra em todo o seu esplendor.

Chego, então, ao fim também do meu texto. Reitero que temos aqui um dos mais execrados filmes de uma franquia muito querida, mas tentei fazer minha defesa para que, quem sabe, mais alguém possa enxergá-lo com mais complacência. 

9.11.20

Relic

Em segundo plano, uma jovem loira de cabelos lisos cortados à altura do queixo e uma mulher de cabelos castanhos lisos cortados à altura dos ombros, estão lado a lado em um balcão que divide sala e cozinha. A segunda lê algo em um papel, enquanto a primeira olha apreensiva para a frente, para uma senhora que tem seu rosto de perfil desfocado em primeiro plano e à direita da cena. A cozinha, ao fundo, é um ambiente cheio de objetos e utensílios espalhados em estantes.

2020
Terror, Mistério, Drama
Direção: Natalie Erika James
Roteiro: Natalie Erika James, Christian White
 




Edna (Robyn Nevin) é uma senhora que desaparece de sua casa, onde mora sozinha, após manifestar nos últimos meses perda de memória e confusão. Kay (Emily Mortimer) e Sam (Bella Heathcote), respectivamente sua filha e sua neta, vêm para a sua casa no intuito de encontrá-la e enfrentar as dificuldades de relacionamento intensificadas pela doença.

Antes de mais nada, gostaria de avisar que esse texto trará informações sobre o desenvolvimento e final da história, pois a minha intenção hoje é justamente falar sobre como o filme me tocou em suas diversas camadas, sendo indispensável, para isso, mencionar o desfecho. De qualquer forma, essas informações estarão devidamente assinaladas, então pode ler sem medo.

Talvez por eu ter uma ligação muito forte com minha mãe, talvez por, de alguma forma, Edna ter me lembrado muito a minha avó materna, talvez por se apresentar a identidade de uma pessoa tão atrelada à sua casa (sendo eu arquiteta). O fato é que Relic me emocionou muito. 

Para mim, ele ressoa como as manchas de uma vida imperfeita, que muitas vezes acabam sendo expostas quando essa vida vai se aproximando do fim. E, ao mesmo tempo e em uma camada mais evidente, como a dificuldade de se enfrentar a demência de um familiar próximo - e a sua própria.

Em seus últimos anos, minha avó morava sozinha em seu apartamento. Ela se manteve lúcida até pouco antes de falecer, mas, assim como Edna (e observadas as devidas proporções), ela gostava de guardar coisas. Não chegava ao ponto de ser considerada uma acumuladora, mas seus armários estavam sempre repletos de coisas que ela foi aguardando ao longo de uma vida inteira. Quando ela faleceu, minha mãe e minhas tias tiveram que se embrenhar naquele mundo de lembranças; separar, organizar, escarafunchar. Eu só posso imaginar quão difícil é para uma filha ter que mergulhar na vida de uma mãe que está partindo ou acabou de partir. Mini spoiler: Assim, quando Sam e Kay entram em um armário e literalmente se perdem lá dentro, era só nisso que eu pensava.

Para além dessa dificuldade, o mofo, as manchas e a sombra, que estão sempre presentes na casa e no corpo de Edna (como se um fosse extensão do outro), me dizem que há acontecimentos em seu passado ou pensamentos em seu coração que estão passando a consumi-la, conforme se aproxima o seu fim. A amargura da relação entre Edna e Kay, os pesadelos de Kay e o fantasma que está sempre à espreita são indícios, ao meu ver, de que uma série de incidentes foram enterrados, abafados e, agora, começam a emergir.

Os mesmos elementos (mofo, manchas e sombra) também me dizem que a doença de Edna a está consumindo e contaminando o relacionamento com filha e neta. Isso fica evidente nos episódios de agressividade para com Sam, nos lapsos de memória. Sam diz a Kay, quando esta menciona colocar a mãe em um asilo, que se Edna trocou suas fraldas quando Kay era pequena, era dever da filha fazer o mesmo pela mãe agora. Contudo, pouco depois, Sam vai sentir na própria pele que uma senhora de idade e uma criança não são a mesma coisa e não demandam os mesmos esforços, sejam físicos ou psicológicos.

Essas questões todas são trabalhadas na chave do horror. E, mesmo se visto apenas considerando esta primeira camada, Relic já é um tremendo filme do gênero. As cenas são de fato assustadoras, o labirinto do armário é de fato desesperador e claustrofóbico, as manchas no corpo e a auto mutilação são enervantes. A fotografia é majoritariamente escura; a ambientação da casa muito bem feita, dando a ideia de ela própria ser algo vivo que está apodrecendo a olhos vistos; a silhueta que está quase sempre em algum cantinho do enquadramento; os sons próprios de uma casa antiga, mas exagerados até o limite do "tem mais alguém nesse lugar?"; a trilha-sonora bastante orgânica com relação às cenas, ela, também, viva.

Então, chega-se ao final da história, e vamos de spoiler. Após uma sequência violenta e aterrorizante para as personagens (e para nós), após tantas feridas abertas, Kay pega sua mãe no colo e a leva para o quarto, onde termina de expor suas necroses, aceitando-as todas. Edna, nesse momento, já não é mais um monstro, já não tem mais o que esconder. Está entregue à delicadeza da filha, que cuida, ampara, perdoa. É quando Sam supera seus medos, compreende o que move sua mãe e retorna para elas. E elas se deitam na cama, quietinhas, as três gerações, amparando-se. É um final belíssimo e tenho que segurar o choro quando me lembro dele - mas não foi filmado ou montado de forma excessivamente dramática, nem pesada demais na trilha-sonora.

O trio de atrizes está muito bem em seus papéis. Eu não sou uma grande fã de Emily Mortimer, mas acho que seus olhos tristes conseguiram trazer o tom exato da melancolia que a personagem precisava. E Robyn Nevin consegue ser ameaçadora e forte, ao mesmo tempo em que doce e frágil. Gosto muito da cena em que ela dança na sala com a neta (novamente, me lembrou a minha avó).

O modo como a diretora Natalie Erika James equilibra tão bem o terror mais explícito com a sensibilidade do drama me remete aos filmes de terror japoneses e sul-coreanos, como Água Negra (2002) e Medo (2003). Spoiler: Um indicativo dessa influência é uma cena em que Edna está murmurando sozinha no hall escuro e caminhando lentamente em direção à porta de entrada da casa, quando Kay a chama. Nesse momento, Edna afasta os cabelos e levanta a cabeça, mostrando que estava andando para trás, de costas para a porta. A ideia do cabelo liso e longo cobrindo o rosto, seja proposital ou não, imediatamente me evoca o cinema japonês - bem como a água e os espelhos, muito presentes ao longo do longa. Pensando bem, a própria fotografia e efeitos sonoros parecem também corroborar essa minha impressão.

Relic é o longa-metragem de estreia de Natalie na direção e se mostra um trabalho bastante coeso, encorpado e objetivo. A partir de agora, estarei muito atenta para os projetos futuros dessa mulher que promete ser um grande nome dessa nova geração de cineastas dedicados ao terror.

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Atualização

27.11.20

Eu sinalizei mais especificamente no texto onde estão os spoilers, para que pessoas que não viram o filme ainda possam ler.